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sua vocação a sério, começar?
Resolveu escrever um artigo sobre “Guerra e Paz”.
— Estou dirigindo uma editora — lhe dissera Vítor: — Faço
questão de lançar um livro seu.
Livro sobre o quê? Para quê? Só sabia escrever sobre a arte de
escrever — o que também era uma arte. Acabaria escrevendo sobre a
arte de escrever sobre a arte de escrever — e assim
indefinidamente,
enfiando-se na sua obstinação como um escravo entre dois espelhos,
até o último andar da torre onde o haviam aprisionado. Esta não o
levaria ao céu, pelo contrário, fixava-o ao chão, para sempre. Cada
vez
se tornava mais penoso escrever ou mesmo ler o que quer que fosse,
a
não ser aquilo que o ajudasse a entender-se, a configurar seus limites
e
aptidões... Encontrou em Valéry preocupação igual: “Esta doença
secreta nos priva das letras, apesar de estar nelas a sua fonte...”
Mas
não chegou a pensar em escrever um artigo sobre Valéry.
— Não é possível que eu só tenha defeitos — reagiu: — Devo ter
algumas qualidades também.
Esta talvez fosse a primeira — aceitar a existência de seus
defeitos. Portanto:
— Não exagerar as qualidades e sim corrigir os defeitos.
— O perigo do virtuosismo!
— A ubiqüidade é impraticável.
— Não cruzar a ponte antes de atingi-la.— Calma! O espetáculo começa
quando você chega.
Estava, assim, armado para viver? Não, estava se armando como
quem vai enfrentar a morte. Nascemos para morrer. Isso também não
queria dizer nada! Germano tinha razão. Senão, vejamos: nascemos
para morrer. Morremos para nascer. Dá na mesma. Muero porque no
muero. Nascemos para viver e morrer — vamos ser lógicos, meu
filho,
nosso nascimento é fruto de um momento de fraqueza de nossos pais.
Vivemos por displicência e morremos por exaustão, cansados de nos
agarrarmos a fórmulas de viver para não nos afogarmos. Rodrigo,
por
exemplo, se afogou apesar de tudo. Pela primeira vez pensou na
morte
como solução. Solução de que, se não havia problema? Um dia ia
abrir
a boca na sua roda costumeira no bar da cidade, para dizer uma
coisa,
viu que não tinha nada a dizer, não chegou a abrir a boca. Vasculhouse
interiormente, não encontrou nada; nem uma idéia, um pensamento
aproveitável. Estava vazio, literalmente vazio, nada interessava,
nada
tinha importância.
— Eu acabei completamente! — descobriu, abismado.
Suicidar-se, resolução afirmativa. Pronto, estava criado o
problema. Tinha dali por diante de sustentar uma resolução negativa,
a
de não se suicidar. Finalmente o círculo vicioso o aprisionava: sua
razão
de viver era esta — não morrer.
— Você precisa tomar cuidado — dizia Térsio, apreensivo. —
Neurastenia não é brincadeira. Se você começar a ficar triste sem
razão,
abra o olho, melhor procurar um médico. Principalmente se sentir
vontade de chorar sem motivo...
— E com motivo, pode?
Térsio ergueu os ombros.
— Bem, com motivo é diferente.
Então ele se pôs inesperadamente a chorar. Não confessava o
motivo nem a si mesmo: Gerlane? Não. Gerlane ficara para trás — já
não se encontrava com ela, já não tinha de mentir em casa, já
podia
dizer tranqüilamente, sem remorso, que ficara na rua com um amigo
até tarde. Os mais avisados diziam que se um homem fica na rua é porque
alguma coisa está errada em casa. O que estaria errado na sua?
O corpo de um afogado deu à praia. O do aviador continuava
desaparecido.
De errado não havia nada, propriamente — e isso é que o
intrigava: não tinha de que se queixar. Seria natural que Antonieta
é
que se queixasse, censurando-o pela irregularidade de sua vida — ou
ao
menos procurasse saber o que havia com ele. A princípio ela dava a
entender em meias respostas que se ressentia — ultimamente nem isso.
— Você ainda gostaria de ter um filho? — perguntou-lhe um dia,
de surpresa.
— Agora é tarde — respondeu ela e não lhe deu mais explicações.
Evitava-o quanto podia, o que não era difícil. Ele aos poucos deixara
de
procurá-la e dormiam em horas desencontradas. Quando telefonava da
rua para avisar que não iria jantar, ela nada dizia — mesmo quando
se
esqueceu de telefonar, ela não reclamou. Uma noite, depois de
avisar
que não iria, mudou de idéia: num inesperado movimento de ternura
pela mulher, que a ele próprio surpreendeu, decidiu voltar cedo,
levá-la
a um cinema. Não a encontrou. Esperou até onze horas da noite.
— Posso saber onde você estava? — perguntou-lhe apenas, num
tom deliberadamente neutro, quando ela finalmente chegou. Deixara-se
ficar na poltrona, um livro na mão, fingindo ler.
— Se lhe interessa.
— É claro que interessa.
— Você não disse que não vinha jantar?
— Disse.
— Que eu não esperasse?
— Disse. E daí?
— Resolvi não esperar mesmo. Fui jantar em casa de papai. Há
algum mal nisso?
— Não, nenhum — suspirou ele, largando o livro: — Só que você
podia ter voltado mais cedo.
— Depois do jantar fui ao cinema.
— Com quem?— Sozinha.
— Não fica bem você ir ao cinema sozinha, pelo menos à noite.
— Não tenho quem me leve.
— Você pode achar graça, mas hoje eu tinha justamente a
intenção de te levar. Que filme você viu?
— É um interrogatório?
— Não. Curiosidade. Não precisa reagir como se eu estivesse
desconfiando de você.
— Pois parece.
— Não está no meu temperamento.
— Então não se queixe.
— Não estou me queixando.
— E eu posso saber por que você veio cedo? Que milagre é esse?
— Estou com fome — disse ele, sem responder. — Não jantei até
agora. Vou sair para comer qualquer coisa.
Milagre? Sim, parecia viver à espera de um milagre. Havia alguma
coisa de errado, sim, de fundamentalmente errado, sim. Se
descobrisse
o que era, estaria salvo.
Ao chegar, sem sono ainda, ia para o escritório. Ficava tentando
ler ou escrever, mas não lia nem escrevia nada. Mesmo seus artigos
semanais, cada vez menores, lhe saíam penosos, difíceis: as
idéias,
sopradas de alguma parte de sua mente, não chegavam a impressionar
a consciência, não se traduziam em palavras e permaneciam difusas,
feitas em estados de espírito. Depois ia dormir, despindo-se no
escuro
para não acordar a mulher. Às vezes fazia chá e o tomava na sala
com
todos os requintes, como num secreto ritual da solidão.
Por que ela o evitava? Era evidente que o evitava. Mesmo quando
ele só para experimentar a procurava, ela se conformava em
aceitá-lo
apenas como quem rende o corpo a um sacrifício necessário e
inevitável. E no princípio fora tão diferente — quando se sentiam
integrados um no outro, completados, perfeitos.
— É tarde por quê? — perguntou ele.
— O quê?— O filho.
— Ora... — e ela se afastou sem dizer mais nada.
Que significava o casamento para ela? — pensava então, irritado.
A gente se casa é para isso mesmo: ter filhos e tocar o barco para
a
frente. Constituir uma família. Quem não pensar assim que não se
case.
E ele próprio? Afinal, que fizera de seu casamento senão um
campo aberto às acomodações, e a todas as transigências,
ludibriando,
burlando a vigilância de Deus?
— Mas escuta aqui, Eduardo Marciano, você acredita mesmo em
Deus? — ele se interrogava ao espelho, fazendo caretas. Ou quem
sabe
acreditava apenas em certos preceitos, certas regras de conduta
que
não chegava sequer a praticar, certos ensinamentos recolhidos e
conservados como as roupas de alguém que já morreu?
Basta de interrogações. Sim, acreditava em Deus, mas um Deus
longínquo, esquecido, distraído, voltado para outras preocupações,
que
não o seu mesquinho problema de aprender a viver. Ou de não ter
problemas. Não pensar mais nisso, pois. Às vezes, quando Antonieta
já
estava dormindo, não resistia e tornava a sair. Ia a um bar
qualquer,
beber um pouco mais em companhia de algum conhecido da
madrugada até que o sono viesse. Conhecidos é que não faltavam. Havia os
antigos freqüentadores do bar, perdidos como ele pela noite à
procura de esquecimento ou convívio — quando não os encontrava,
fazia relações com o primeiro que aparecesse. Uma noite, já
bêbado,
seguiu com um desses até uma casa de mulheres, deitou-se com uma
delas. No dia seguinte nem se lembraria o que chegou a fazer com
ela,
mas no momento em que entrou novamente na intimidade de seu
quarto que cheirava a tranqüilidade e sono, o sono de sua mulher,
teve
vergonha de si mesmo, teve remorso, deixou-se cair de joelhos junto
à
cama, começou a chorar. Antonieta acordou sobressaltada .
— O que foi? Você está doente?
Espantou-se ao vê-lo assim todo vestido:
— Você vai sair? Por que está chorando?— Por causa de meu pai — soluçou
ele, sem erguer a cabeça. Ela
chegou a sorrir, passou a mão pelos seus cabelos:
— Seu pai já morreu há tanto tempo...
— Mas só agora eu estou sentindo. Ele era tão bom para mim,
Antonieta.
Em verdade, passara sem transição a chorar a morte do pai.
— Você saiu e andou bebendo. Está cheirando a uísque. Vem
dormir que já é tarde.
— Não! Vou ler um pouco.
Foi dormir no escritório, porque naquela noite não queria se
aproximar de Antonieta.
ABRIU a carta com sofreguidão pensando ser de Hugo ou Mauro,
lembranças de um tempo morto. Era do Veiga: “Queria uma reportagem
sobre o momento político. Coisa viva, movimentada, inteligente, como
só
você saberia fazer”.
— Vou fazer uma reportagem política. Talvez seu pai possa me
ajudar.
Tentava amparar-se num entusiasmo de ocasião: coisa viva,
movimentada, inteligente, só ele saberia fazer — Veiga tinha
razão.
Ficou um pouco desconfiado: por que ele teria se lembrado
justamente
de mim? Já não publicava mais nada — o jornal cortara seus artigos
semanais por falta de espaço. E desde estudante não escrevia sobre
política. O Amorim, por exemplo, seria muito mais indicado:
entendia
do assunto, também era mineiro, também trabalhara com o Veiga...
Não
lhe agradava a idéia de visitar o ex-ministro especialmente para
isso.
Era-lhe penoso enfrentar a roda de políticos que o cercava —
bajuladores, aproveitadores eventuais, trocavam de idéia e de
convicções como quem troca de camisa, segundo as conveniências do
momento. Ele, pelo menos, ainda acreditava numas tantas coisas.
— São uns vendidos — concluiu, no mesmo tom de Mauro,
antigamente.Desta vez, porém, iria procurá-lo como jornalista — afinal
de
contas, era um escritor, um profissional, a quem uma missão fora
confiada. Como só ele saberia fazer. Sabia outrora fazer artigos
desafiando a censura, atacando o governo, exigindo democracia.
Onde
ficara tudo aquilo? Ali talvez estivesse a oportunidade para
recomeçar
algo de útil, voltar a escrever, influindo, participando.
Movimentada,
inteligente. Quanto mais gente lá estivesse, melhor. Conversaria
com
um e outro, contaria tudo que ouvisse.
Não durou muito o entusiasmo: teve a surpresa de encontrar o
velho sozinho, sentado na varanda, e desde o primeiro instante o calor
e
a simpatia com que foi recebido neutralizaram sua agressiva
disposição
de escrever fosse o que fosse.
— Reportagem? Mas como você anda fora do mundo! Já não
tenho mais nada com isso, meu filho, Deus me livre de política.
Desde
que deixei o ministério não me meti mais. Aceitei ser ministro
apenas
para servir à minha pátria. E servir ao presidente, meu amigo
pessoal.
Mas agora o presidente é outro... As coisas não andam nada boas,
meu
rapaz. Aqui, tome alguma coisa. Já soube que você gosta de um uísque.
Segurou-o pelo braço, levou-o à sala:
— A política só me deu aborrecimento. Fiz os maiores sacrifícios e
nem reconhecem. Almoçava apenas uma vez por dia! Quero dizer, não
tinha tempo nem de almoçar. Não entendo a orientação desse
governo.
Ainda agora estão dizendo que vão pedir uma comissão de inquérito
contra mim. Imagine! Dizem que isso é coisa do Sousa, aquele
menino
que foi eleito deputado. Logo o Sousa, não saía de minha casa! Não
acredito que o Sousa seja capaz de uma coisa dessas. Algum inimigo
meu, na certa.
— Na certa — repetiu Eduardo, para dizer alguma coisa. Nem
sabia quem era o Sousa. Mas o homem não conversava, estava
pensando em voz alta:
— E se a imprensa souber disso, adeus meu sossego. Aí é que a
comissão sai mesmo. Aliás, nada tenho a temer. Minha consciência
está
tranqüila. Sempre procurei cumprir meu dever. Mas então você quer fazer
uma reportagem? Quem sabe o Marques não poderia ajudá-lo?
Dizem que ele vai ser líder da maioria. Espera, vamos ver se o
Marques
está em casa. Aqui, tome outro. Sirva-se à vontade.
Foi ao telefone e discou um número. Onde aquele ministro
desempenado e seguro de si que o tomava pelo braço e dizia “me
conte
tudo sobre a morte da meretriz”? O Marques não estava em casa.
— Fica para outra vez — disse Eduardo, se erguendo.
— Espere, espere! — e o homem o reteve acaloradamente: —
Ainda é cedo! Você não contou nada. Então, como vão as coisas?
Como
vão as letras?
Forçou Eduardo a sentar-se de novo, terminar o seu uísque.
— Vocês andam sumidos, não aparecem!
Parecia buscar mentalmente um assunto que interessasse o
genro, como se temesse ficar só. Num inesperado movimento de
simpatia, Eduardo pensou em convidá-lo a sair, dar uma volta.
— O senhor é que nunca nos visita — arriscou apenas.
— Não saio mais, a não ser para ir à igreja. Às vezes vou a um
cinema...
Eduardo o olhou, surpreendido: jamais imaginara que aquele
homem fosse de igreja.
— Busquei o consolo da religião. A política me absorveu, mas
desde que perdi minha mulher me sinto muito só. Depois minha filha
se
casou... Mas vocês apareçam de vez em quando! Ela nunca mais
esteve
aqui.
— Outro dia mesmo ela veio jantar com o senhor.
Saiu dali deprimido, as idéias embaralhadas. Era cedo ainda e a
perspectiva de encontrar Antonieta lhe pareceu de súbito
insuportável.
Já não tinha o que lhe dizer e precisava isolar-se, tomar mais um
uísque, aguardar os acontecimentos, aguardar o inimigo.
— As coisas não vão nada boas, meu rapaz — repetia
mentalmente as palavras do sogro.
No bar, inesperadamente: Amorim, bebendo sozinho junto ao
balcão.— Você está parecendo um fantasma! — espantou-se o outro.
Pensou em escusar-se e sair: passara ali só por acaso, tinha
alguém à sua espera... Era tarde, porém. Amorim o forçava a sentar-se,
pedia um uísque para ele.
— Onde é que você se meteu?
— Por aí...
— Imagine que eu estava aqui pensando justamente em você.
Como vai indo Gerlane?
— Nunca mais vi.
— Estava pensando em telefonar a ela, chamá-la para tomar
qualquer coisinha comigo, imaginei que você...
— Não temos nada um com o outro, quem lhe disse isso?
— Bem, eu pensei...
Para fugir à lembrança de Gerlane, Eduardo lhe contou que vinha
da casa do ex-ministro, referiu-se à comissão de inquérito:
— Ele está preocupado, mas disse que não tem nada a temer. Isso
é coisa do Sousa, aquele deputado.
Mostrar-se a par da situação política: revelar que se interessava
por tudo, sabia o que pensar. Amorim agora era comentarista
político
num jornal.
— Mas veja lá, hein? isso não é para publicar. O Veiga me
encomendou uma reportagem sobre a situação, mas, francamente, as
coisas não vão nada boas: só se fosse para descer o pau. E isso
não
interessa ao Veiga...
Amorim lhe disse que estava pensando em fundar um jornal:
— Um jornal nas próximas eleições, bem orientado, toma conta
deste país. O homem vai voltar, você escuta o que estou lhe dizendo.
— O que você chama de bem orientado?
Foi para casa cansado de política, cansado de Amorim, cansado
mesmo de beber — era inútil: sentia-se cada vez mais lúcido, senhor
de
cada um dos detalhes da vida, só lhe faltando uma visão do
conjunto.
Antonieta ainda acordada, a esperá-lo:
— Então, fez a reportagem?— Antonieta — e sentou-se na cama, estudando a
melhor
maneira de dizer: — Seu pai se queixou muito, dizendo que você
nunca
mais foi visitá-lo. Você não disse que outro dia jantou lá?
— Tenho culpa se ele nunca pára em casa? Sempre que vou lá ele
não está. Outro dia jantei sozinha, porque ele não apareceu.
— Isso você não me contou.
— Você não me perguntou.
— Ele disse que não tem saído ultimamente — experimentou
ainda.
— Só se ultimamente. Mas e a reportagem?
Ele passou a mão pelo rosto, exausto:
— Estive com o Amorim...
Na manhã seguinte ela veio acordá-lo:
— O que você andou dizendo ao Amorim? Papai telefonou muito
aborrecido com você.
— O quê? Aborrecido comigo?
Mandou comprar o jornal: num dos tópicos do Amorim, o que lhe
dissera sobre o ex-ministro.
— Aquele canalha. Foi só eu pedir que não publicasse, saiu dali e
foi escrever. Mas ele vai ver comigo.
Somente à noite conseguiu se comunicar com o jornalista, pelo
telefone:
— Você não tem caráter, Amorim. Bastou dizer que não
publicasse.
— Mas aquilo não tinha a menor importância! — se escusava o
outro. — Na redação todo mundo já sabia.
— Não tenho nada com isso. Eu disse que não publicasse.
— Mas você não entende! Não era novidade nenhuma, segredo
nenhum. A comissão de inquérito foi pedida hoje!
— Eu disse que não publicasse! — repetiu Eduardo, enfurecido. O
outro estourou, afinal:
— Você não manda em mim, ora essa! Publico o que eu quiser.
— Porque você não tem caráter.— Não facilita comigo não, Eduardo.
— Vá ameaçar sua mãe.
— Não facilita não — repetiu o outro.
Desligou o telefone num terrível estado de nervos. Mal podia
conter-se. Antonieta o espreitava, alarmada:
— Também não fique assim! Afinal de contas, vocês são amigos.
— Amigos uma ova. Não sei por que acabei convivendo com um
sujeito desses. Cafajeste, ordinário. Em Belo Horizonte era repórter
de
polícia. Você já viu gente da polícia prestar?
— Mas se todo mundo já sabia.
— Ainda por cima você dá razão a ele.
Então Antonieta inesperadamente lhe propôs que esquecessem o
incidente e fossem dormir.
— A essa hora? — espantou-se. — Ainda é cedo...
Ela baixou os olhos.
— Não. Vou trabalhar um pouco.
Foi para o escritório, mas acabou desistindo ao fim de meia hora:
não conseguia ler nem escrever. Rendeu-se, afinal — e encontrou
Antonieta à sua espera.
NEUSA era a vizinha. Tinha dezessete anos, se fizera amiga de
Antonieta,
costumava aparecer de short, entrava pela porta da cozinha, andava
desenvoltamente pelos quartos. Às vezes invadia o escritório, dava
com
Eduardo sentado diante da máquina:
— “Genius at work” — gracejava, acomodando-se na extremidade
da mesa, em frente a ele. Mauro e Hugo vinham surpreendê-lo em
meio
ao seu romance, fazia tanto tempo. Agora não tinha Mauro, nem
Hugo,
nem romance. Neusa viva, saudável, inquietante. Um dia foi esticar
a
mão para apanhar um papel, sem querer deslizou os dedos pelas
coxas
dela. A menina não se incomodou, fez que não viu. Desde então sua
presença passou a ser um suplício:
— Isso é uma loucura — censurava-se ele, revoltado.Não resistia,
inventava pretextos para retê-la no escritório, longe
de Antonieta. Num sábado à tarde atirou todos os livros da estante
no
chão, chamou Neusa para ajudá-lo a arrumar:
— Fui mexer na estante, ela caiu.
E ficaram os dois, pretensamente atarefados em recolher os
livros, mas na verdade se encostando um no outro enquanto
amparavam a estante, e se ela abria um livro, fingindo ler, ele se
debruçava sobre seu ombro, colando-se a seu corpo, fingindo ler
também. Ficava alucinado de desejo, temendo descontrolar-se — o
escândalo que seria! Mais de uma vez deixou-a e foi trancar-se no
banheiro, antes que fosse tarde, usando Neusa na imaginação: era
uma
espécie de defesa, medida de precaução — dos males o menor. Depois
se arrependia como antigamente, sentia remorso:
— Tem cabimento isso, rapaz? — incriminava-se, com dureza: —
Na sua idade!
Mas acabava repetindo Mauro, amortecendo a consciência no
reconhecimento de que, justamente por não ser criança, não devia
ter
mais preconceitos — encarar tudo com naturalidade.
Neusa e sua pele jovem, macia, à mostra na roupa exígua.
Saberia o perigo a que se expunha? Por que o procurava com tanta
insistência, por que dissimulava?
— Ela está percebendo tudo, a safadinha — excitava-se ele.
Uma tarde em que Antonieta havia saído para a costureira, pediu
a Neusa que o ajudasse a trocar a lâmpada do escritório, que se
havia
queimado. Pôs a mesa sob o lustre. Vestia apenas um pijama fino e
a
lâmpada nem queimada estava.
— Não alcanço. Só se eu carregar você.
— Olha que nós dois caímos. Você me agüenta?
Neusa subiu na mesa, deixou que ele a erguesse, segurando-a
fortemente pelas coxas. Ela estava de short, e procurava desatarraxar
a
lâmpada, enquanto a mão de Eduardo tocava-lhe a pele entre as
pernas, o rosto apertava-lhe o ventre, e as narinas, ofegantes,
buscavam o sexo. Deixou que ela escorregasse entre seus braços e todo o
corpo dele tremia, mal se mantinha de pé, por pouco não tombaram
ao chão. Assim, um instante: ela também tremia, abraçada a ele, a
lâmpada mal segura na mão. Eduardo não resistiu mais e estremecia
já, num espasmo final, comprimindo o próprio sexo contra o dela.
— Cuidado, nós caímos — murmurou a moça aos seus ouvidos, e
fechou os olhos. A lâmpada tombou ao chão e explodiu.
Naquela mesma tarde Eduardo lhe pediu que não viesse mais à
sua casa:
— Espero que você compreenda por quê — disse apenas.
Antonieta estranhava a ausência da moça.
— Não quero que essa menina fique por aí, tomando intimidade
conosco.
— Por quê? Ela é tão boazinha.
— Não quero. Você parece que não pensa as coisas.
Ela parecia que não pensava as coisas. Ou talvez nem se
importasse. Mas agora as relações entre ambos iam ficando
inesperadamente acomodadas, o convívio se fazia mais fácil:
— Hoje vamos ao cinema — anunciava ele, depois do jantar, e ela
chegava a sorrir. Voltavam a sair juntos, iam ao cinema, visitavam o
pai
de Antonieta.
— Sabe, Eduardo? — dizia ele: — Gostaria de montar um
escritório de advocacia. Você viria trabalhar comigo...
A promessa feita ao pai, jamais cumprida.
— Pensei que o senhor tivesse se zangado comigo por causa
daquela noticia.
— Qual, bobagem — protestou o homem: — você viu? Não
apuraram nada contra a minha administração. Política é isso
mesmo...
Enfim, só tenho de prestar contas a Deus, a mais ninguém.
Ficava sentado na varanda, sozinho, triste porque os dois logo se
despediam:
— Voltem amanhã, sim? Por que não vêm almoçar comigo?
— Sabe de uma coisa? — dizia Eduardo, a sós com ela. — Seu pai
afinal de contas é um bom sujeito, não tem dúvida. É pena ter-se metido
em política. Ficou tão amargurado... Não sei quem, acho que foi
Guardini — aquele livro que eu estava lendo, sabe? — que disse: “o
homem que quer justiça tem de colocar-se em nível superior ao da
simples justiça”. Pois bem: isso serve para tudo. O homem que quer
fazer política, tem de se colocar em nível superior ao da simples
política.
Você veja, por exemplo, o problema do romance...
— Eduardo... — interrompeu ela.
— O quê?
— Até quando vai durar isso?
— Isso o quê? — estranhou ele.
Ela não respondeu. Foram para casa pensativos, mas se
juntassem todos os seus pensamentos, talvez não formassem com eles
uma só idéia, senão a de que já não obedeciam mais à própria
vontade,
mas cumpriam como autômatos o ritual de um destino certo. Um dia
ele encontrou Lêda, mulher do Amorim, num ônibus a caminho da
cidade.
— Eduardo, há quanto tempo!
Estava mais velha, acabada. Eduardo não sabia o que dizer; mal
a reconhecia — aquele rosto sem pintura, aqueles lábios outrora vivos
e
frescos, que ele num momento de loucura ousara beijar.
— Você também anda sumida — experimentou.
— Continuo morando em Niterói. E você, como vai indo? Que há
com você?
— Comigo? Nada. Por quê?
— Não sei, você está tão... diferente... Tenho ouvido coisas.
— Fala-se muito — gracejou ele.
— E Antonieta?
— Vai bem — e olhou-a, intrigado.
— Não sei, Eduardo, vocês dois me preocupam tanto... Não
gostaria que acontecesse com vocês o que aconteceu conosco. Lembrase
daquele tempo?
— O que aconteceu com vocês?
Ela sorriu tristemente:— O que aconteceu conosco... Você tem visto
Amorim?
— Estive com ele outro dia.
— E Antonieta? — insistiu ela. — Nunca mais estivemos juntas.
Um dia destes a vi numa confeitaria com um senhor de idade — nem
me reconheceu, parece.
Ele não respondeu. Na mesma noite, porém, perguntou a
Antonieta:
— Com quem você foi a uma confeitaria num dia destes?
— Confeitaria? Eu?
— Estive com Lêda, ela me contou. Disse que te viu com um
senhor de idade.
— Ah! — e ela se moveu pelo quarto, despreocupada: — Deve ter
sido papai. Me encontrei com ele na cidade, fomos tomar chá.
— Isso também você não me contou.
— Por que haveria de contar? Você não me perguntou.
— Estou perguntando agora.
— Então pergunte — desafiou ela: — O que você está querendo
saber?
Ele respirou fundo.
— Onde está morando o Germano, por exemplo. Gostaria de
procurá-lo.
— Isso você já me perguntou.
— E você disse que era no Hotel Pálace.
— Então procure no Hotel Pálace. Mais alguma coisa?
— Antonieta, eu... — e não pôde prosseguir. A voz lhe faltava, um
soluço atravessou-lhe a garganta. As coisas perdiam o sentido, a
realidade lhe escapava, e era preciso uma verdade qualquer, uma
verdade concreta, acessível e sem mistérios a que se agarrar, para
não
ser tragado.
— Eu não agüento mais, Antonieta — disse ele, com esforço,
passando a mão pelo rosto num gesto de cansaço.
— Não precisa ficar assim. Descansa um pouco. Amanhã nós
conversamos sobre isso.— É preciso que você me ajude.
— Sinto muito, mas não posso fazer nada por você.
— Então eu estou perdido, eu estou perdido — e ele escondeu o
rosto nas mãos. — Não sei mais nada, não conto com mais ninguém...
— Amanhã nós conversamos — repetiu ela.
— Você promete? — ele pediu, submisso.
— Amanhã você saberá de tudo.
— Amanhã talvez seja tarde...
— Não é não — encerrou ela, absorta, e acrescentou, olhando o
relógio: — Já é tarde, eu vou dormir.
— Sempre é tarde. Sempre é tarde — dizia ele para si mesmo, já
sozinho no escritório, cercado de fantasmas. E entregou-se a uma
de
suas crises de choro, a mais longa e violenta, que durou quase toda
a
noite. A manhã veio encontrá-lo adormecido na poltrona.
TEVE a surpresa de dar com o velho hotel fechado aos hóspedes,
pronto
para demolição. Pelo aspecto todos já se haviam mudado. Restava
apenas um porteiro de vigia no prédio abandonado.
— Não há mais ninguém morando aqui? — perguntou.
Encontrou o velho sozinho num quarto do hotel vazio — pareceulhe
extremamente agitado.
— Mas já não há ninguém morando aqui — disse-lhe Eduardo,
perplexo.
— Por que você insiste em me procurar? — e Germano andava de
um lado para outro, num roupão usado. Tomava longos goles de
uísque, servindo-se da garrafa sobre a mesa. Não parecia seguro de
si,
sua voz se alterava, devia estar bêbado. — Me deixe sozinho no meu
canto, pelo amor de Deus, vá embora.
— Antonieta — disse Eduardo apenas.
— Converse com ela e não comigo.
— Não há mais conversa possível entre nós dois.
— Nunca houve. Você nem sequer a conhece.— Pois então? — e Eduardo
sentou-se na cama.
— Pois então converse sozinho, mas não comigo. O que você quer
de mim?
O velho sentou-se a seu lado, sem olhá-lo, sacudiu a cabeça:
— Não tenho nada a lhe dizer. Você jamais saberá nada, você não
é capaz de saber coisa nenhuma desta vida.
— Por quê?
— Porque você se julga dono de seu destino, e ninguém é dono de
coisa nenhuma neste mundo. Eu por acaso sou dono do meu? Não faço
coisas que por si já são destinos? Ninguém conhece ninguém, nem a
si
mesmo, a cada passo nos surpreendemos, nos desmentimos, negamos o
que um minuto antes nos pareceu a última das verdades. Olhe, só há
uma verdade essencial, e essa a gente gasta a vida toda
procurando,
quando ela está montada no nosso ombro como uma cruz. Só um cego é
que não vê. Eu estou morando sozinha neste hotel: todos os hóspedes
já
foram embora, só eu fiquei, pedi que me deixassem mais uma semana,
só preciso de uma semana. Pois aqui estou eu, e os ratos. Há ratos
por
todo lado — às vezes passeio pelos corredores vazios, entro num
quarto
e noutro, tudo vazio, parece um navio abandonado, vai afundar. De
noite fico quieto aqui no meu canto, não há luz, desligaram tudo,
breve
começam a demolir. Vejo até morcegos nos beirais do telhado, onde
antigamente moravam pombas. O prédio estala e geme de velhice,
parece que vai morrer...
— Por que não se muda? — perguntou Eduardo, impressionado.
— Para onde? Para quê? Estou cansado...
E o velho se estendeu na cama, prostrado. Em pouco ressonava
pesadamente, a boca aberta, exalando álcool, o peito magro
arfando.
Eduardo o olhou durante algum tempo — tentando decifrar o enigma
que era a máscara de um homem. Cobriu-o com a colcha, antes de
sair.
À porta perguntou ao vigia:
— Não seria melhor que vocês mudassem o velho logo de uma
vez?
Escurecia sobre a cidade. Em vez de ir para casa, tomou insensivelmente
o caminho do bar. Precisava beber alguma coisa, que já
não se agüentava de aflição. Encontrou Térsio em companhia de dois
ou
três conhecidos — um deles Aragão, o aviador:
— Lembra do Rodrigo, aquele amigo seu? Foi encontrado.
— Encontrado? — saltou Eduardo.
— Retiraram afinal o avião do mar, o corpo estava preso na
cabine. Ele ficou enganchado, não conseguiu sair.
— Mas o telegrafista disse que o viu nadando! — protestou
Eduardo. — Na época do desastre todos os jornais...
— Foi engano: afundou com o avião, não chegou a nadar. Então
Rodrigo não chegara a nadar. Inútil e sem sentido o sofrimento de
dois
dias e duas noites seguidas, o companheiro perdido na imensidão do
oceano, enfrentando a fúria das ondas, nadando, sempre nadando,
como antigamente a seu lado... Já estava morto, afogado dentro do
próprio avião, nem ao menos chegara a nadar. Sentiu certo alívio
ao
descobrir que há sofrimentos inúteis também, gratuitos,
imaginários,
cuja causa já se extinguiu como a da luz de uma estrela, ou que
nem
sequer chegou a existir. Em casa contou quase jovialmente a Antonieta:
— Sabe? Encontraram o cadáver de Rodrigo.
— Quem? — assustou-se ela.
— Rodrigo. Não chegou a nadar, ficou preso no avião. Agora,
porém, Aragão já não falava no companheiro morto e sim na própria
Antonieta — dirigia-se a Térsio, apontando Eduardo:
— Esse aí eu conheci em Uberaba, já faz muitos anos, morto de
paixão pela namorada... Ele ficou no meu quarto, não havia lugar no
hotel. Contribuí muito para o casamento deles, não tenha dúvida.
Foi
ou não foi, Eduardo? Eu era amigo de Antonieta... Ela sempre dizia
que
se tivesse de casar haveria de ser com um artista. Pois não foi mesmo?
— Você dizia que se tivesse de casar haveria de ser com um
artista? — perguntou ele.
— De onde você tirou isso? — estranhou ela.
— Aragão me contou. Aquele seu amigo, estive com ele hoje.
— É possível... Coisa de menina.— Eu não sou artista.
— Que bobagem é essa? Você não é escritor?
— Escritor é quem escreve. Eu não escrevo nada. E não sou
artista nem aqui nem na China.
— O que você é, então? — disse ela, rindo ante o seu tom
desalentado.
— Funcionário da Prefeitura.
— E daí?
— Você se casou com o homem errado. Olha, Antonieta, preciso
ter uma conversa com você.
— Você bebeu?
— Um pouco, não muito. Ontem você prometeu que...
Foi interrompido pela campainha do telefone. Ambos se voltaram.
Tudo se precipitava.
— Deve ser Amorim — disse ela: — Já telefonou três vezes para
você.
— Amorim?
— É. Olha, Eduardo, estive pensando...
— O que é que ele quer?
— Não sei — e ela pôs-se a falar depressa, antes que ele
atendesse: — Se eu lhe pedir uma coisa você faz?
— Depende.
— Depende de você — segurando-o pelo braço.
— Então pede — já com a mão no fone.
— Queria que você não saísse mais hoje.
— O quê...
— Queria que você...
— Alô! — disse ele ao telefone.
Era Amorim:
vai escrever — eis tudo, o resto era fácil. Quando iria ele. afinal,
levar
sua vocação a sério, começar?
Resolveu escrever um artigo sobre “Guerra e Paz”.
— Estou dirigindo uma editora — lhe dissera Vítor: — Faço
questão de lançar um livro seu.
Livro sobre o quê? Para quê? Só sabia escrever sobre a arte de
escrever — o que também era uma arte. Acabaria escrevendo sobre a
arte de escrever sobre a arte de escrever — e assim
indefinidamente,
enfiando-se na sua obstinação como um escravo entre dois espelhos,
até o último andar da torre onde o haviam aprisionado. Esta não o
levaria ao céu, pelo contrário, fixava-o ao chão, para sempre. Cada
vez
se tornava mais penoso escrever ou mesmo ler o que quer que fosse,
a
não ser aquilo que o ajudasse a entender-se, a configurar seus limites
e
aptidões... Encontrou em Valéry preocupação igual: “Esta doença
secreta nos priva das letras, apesar de estar nelas a sua fonte...”
Mas
não chegou a pensar em escrever um artigo sobre Valéry.
— Não é possível que eu só tenha defeitos — reagiu: — Devo ter
algumas qualidades também.
Esta talvez fosse a primeira — aceitar a existência de seus
defeitos. Portanto:
— Não exagerar as qualidades e sim corrigir os defeitos.
— O perigo do virtuosismo!
— A ubiqüidade é impraticável.
— Não cruzar a ponte antes de atingi-la.— Calma! O espetáculo começa
quando você chega.
Estava, assim, armado para viver? Não, estava se armando como
quem vai enfrentar a morte. Nascemos para morrer. Isso também não
queria dizer nada! Germano tinha razão. Senão, vejamos: nascemos
para morrer. Morremos para nascer. Dá na mesma. Muero porque no
muero. Nascemos para viver e morrer — vamos ser lógicos, meu
filho,
nosso nascimento é fruto de um momento de fraqueza de nossos pais.
Vivemos por displicência e morremos por exaustão, cansados de nos
agarrarmos a fórmulas de viver para não nos afogarmos. Rodrigo,
por
exemplo, se afogou apesar de tudo. Pela primeira vez pensou na
morte
como solução. Solução de que, se não havia problema? Um dia ia
abrir
a boca na sua roda costumeira no bar da cidade, para dizer uma
coisa,
viu que não tinha nada a dizer, não chegou a abrir a boca. Vasculhouse
interiormente, não encontrou nada; nem uma idéia, um pensamento
aproveitável. Estava vazio, literalmente vazio, nada interessava,
nada
tinha importância.
— Eu acabei completamente! — descobriu, abismado.
Suicidar-se, resolução afirmativa. Pronto, estava criado o
problema. Tinha dali por diante de sustentar uma resolução negativa,
a
de não se suicidar. Finalmente o círculo vicioso o aprisionava: sua
razão
de viver era esta — não morrer.
— Você precisa tomar cuidado — dizia Térsio, apreensivo. —
Neurastenia não é brincadeira. Se você começar a ficar triste sem
razão,
abra o olho, melhor procurar um médico. Principalmente se sentir
vontade de chorar sem motivo...
— E com motivo, pode?
Térsio ergueu os ombros.
— Bem, com motivo é diferente.
Então ele se pôs inesperadamente a chorar. Não confessava o
motivo nem a si mesmo: Gerlane? Não. Gerlane ficara para trás — já
não se encontrava com ela, já não tinha de mentir em casa, já
podia
dizer tranqüilamente, sem remorso, que ficara na rua com um amigo
até tarde. Os mais avisados diziam que se um homem fica na rua é porque
alguma coisa está errada em casa. O que estaria errado na sua?
O corpo de um afogado deu à praia. O do aviador continuava
desaparecido.
De errado não havia nada, propriamente — e isso é que o
intrigava: não tinha de que se queixar. Seria natural que Antonieta
é
que se queixasse, censurando-o pela irregularidade de sua vida — ou
ao
menos procurasse saber o que havia com ele. A princípio ela dava a
entender em meias respostas que se ressentia — ultimamente nem isso.
— Você ainda gostaria de ter um filho? — perguntou-lhe um dia,
de surpresa.
— Agora é tarde — respondeu ela e não lhe deu mais explicações.
Evitava-o quanto podia, o que não era difícil. Ele aos poucos deixara
de
procurá-la e dormiam em horas desencontradas. Quando telefonava da
rua para avisar que não iria jantar, ela nada dizia — mesmo quando
se
esqueceu de telefonar, ela não reclamou. Uma noite, depois de
avisar
que não iria, mudou de idéia: num inesperado movimento de ternura
pela mulher, que a ele próprio surpreendeu, decidiu voltar cedo,
levá-la
a um cinema. Não a encontrou. Esperou até onze horas da noite.
— Posso saber onde você estava? — perguntou-lhe apenas, num
tom deliberadamente neutro, quando ela finalmente chegou. Deixara-se
ficar na poltrona, um livro na mão, fingindo ler.
— Se lhe interessa.
— É claro que interessa.
— Você não disse que não vinha jantar?
— Disse.
— Que eu não esperasse?
— Disse. E daí?
— Resolvi não esperar mesmo. Fui jantar em casa de papai. Há
algum mal nisso?
— Não, nenhum — suspirou ele, largando o livro: — Só que você
podia ter voltado mais cedo.
— Depois do jantar fui ao cinema.
— Com quem?— Sozinha.
— Não fica bem você ir ao cinema sozinha, pelo menos à noite.
— Não tenho quem me leve.
— Você pode achar graça, mas hoje eu tinha justamente a
intenção de te levar. Que filme você viu?
— É um interrogatório?
— Não. Curiosidade. Não precisa reagir como se eu estivesse
desconfiando de você.
— Pois parece.
— Não está no meu temperamento.
— Então não se queixe.
— Não estou me queixando.
— E eu posso saber por que você veio cedo? Que milagre é esse?
— Estou com fome — disse ele, sem responder. — Não jantei até
agora. Vou sair para comer qualquer coisa.
Milagre? Sim, parecia viver à espera de um milagre. Havia alguma
coisa de errado, sim, de fundamentalmente errado, sim. Se
descobrisse
o que era, estaria salvo.
Ao chegar, sem sono ainda, ia para o escritório. Ficava tentando
ler ou escrever, mas não lia nem escrevia nada. Mesmo seus artigos
semanais, cada vez menores, lhe saíam penosos, difíceis: as
idéias,
sopradas de alguma parte de sua mente, não chegavam a impressionar
a consciência, não se traduziam em palavras e permaneciam difusas,
feitas em estados de espírito. Depois ia dormir, despindo-se no
escuro
para não acordar a mulher. Às vezes fazia chá e o tomava na sala
com
todos os requintes, como num secreto ritual da solidão.
Por que ela o evitava? Era evidente que o evitava. Mesmo quando
ele só para experimentar a procurava, ela se conformava em
aceitá-lo
apenas como quem rende o corpo a um sacrifício necessário e
inevitável. E no princípio fora tão diferente — quando se sentiam
integrados um no outro, completados, perfeitos.
— É tarde por quê? — perguntou ele.
— O quê?— O filho.
— Ora... — e ela se afastou sem dizer mais nada.
Que significava o casamento para ela? — pensava então, irritado.
A gente se casa é para isso mesmo: ter filhos e tocar o barco para
a
frente. Constituir uma família. Quem não pensar assim que não se
case.
E ele próprio? Afinal, que fizera de seu casamento senão um
campo aberto às acomodações, e a todas as transigências,
ludibriando,
burlando a vigilância de Deus?
— Mas escuta aqui, Eduardo Marciano, você acredita mesmo em
Deus? — ele se interrogava ao espelho, fazendo caretas. Ou quem
sabe
acreditava apenas em certos preceitos, certas regras de conduta
que
não chegava sequer a praticar, certos ensinamentos recolhidos e
conservados como as roupas de alguém que já morreu?
Basta de interrogações. Sim, acreditava em Deus, mas um Deus
longínquo, esquecido, distraído, voltado para outras preocupações,
que
não o seu mesquinho problema de aprender a viver. Ou de não ter
problemas. Não pensar mais nisso, pois. Às vezes, quando Antonieta
já
estava dormindo, não resistia e tornava a sair. Ia a um bar
qualquer,
beber um pouco mais em companhia de algum conhecido da
madrugada até que o sono viesse. Conhecidos é que não faltavam. Havia os
antigos freqüentadores do bar, perdidos como ele pela noite à
procura de esquecimento ou convívio — quando não os encontrava,
fazia relações com o primeiro que aparecesse. Uma noite, já
bêbado,
seguiu com um desses até uma casa de mulheres, deitou-se com uma
delas. No dia seguinte nem se lembraria o que chegou a fazer com
ela,
mas no momento em que entrou novamente na intimidade de seu
quarto que cheirava a tranqüilidade e sono, o sono de sua mulher,
teve
vergonha de si mesmo, teve remorso, deixou-se cair de joelhos junto
à
cama, começou a chorar. Antonieta acordou sobressaltada .
— O que foi? Você está doente?
Espantou-se ao vê-lo assim todo vestido:
— Você vai sair? Por que está chorando?— Por causa de meu pai — soluçou
ele, sem erguer a cabeça. Ela
chegou a sorrir, passou a mão pelos seus cabelos:
— Seu pai já morreu há tanto tempo...
— Mas só agora eu estou sentindo. Ele era tão bom para mim,
Antonieta.
Em verdade, passara sem transição a chorar a morte do pai.
— Você saiu e andou bebendo. Está cheirando a uísque. Vem
dormir que já é tarde.
— Não! Vou ler um pouco.
Foi dormir no escritório, porque naquela noite não queria se
aproximar de Antonieta.
ABRIU a carta com sofreguidão pensando ser de Hugo ou Mauro,
lembranças de um tempo morto. Era do Veiga: “Queria uma reportagem
sobre o momento político. Coisa viva, movimentada, inteligente, como
só
você saberia fazer”.
— Vou fazer uma reportagem política. Talvez seu pai possa me
ajudar.
Tentava amparar-se num entusiasmo de ocasião: coisa viva,
movimentada, inteligente, só ele saberia fazer — Veiga tinha
razão.
Ficou um pouco desconfiado: por que ele teria se lembrado
justamente
de mim? Já não publicava mais nada — o jornal cortara seus artigos
semanais por falta de espaço. E desde estudante não escrevia sobre
política. O Amorim, por exemplo, seria muito mais indicado:
entendia
do assunto, também era mineiro, também trabalhara com o Veiga...
Não
lhe agradava a idéia de visitar o ex-ministro especialmente para
isso.
Era-lhe penoso enfrentar a roda de políticos que o cercava —
bajuladores, aproveitadores eventuais, trocavam de idéia e de
convicções como quem troca de camisa, segundo as conveniências do
momento. Ele, pelo menos, ainda acreditava numas tantas coisas.
— São uns vendidos — concluiu, no mesmo tom de Mauro,
antigamente.Desta vez, porém, iria procurá-lo como jornalista — afinal
de
contas, era um escritor, um profissional, a quem uma missão fora
confiada. Como só ele saberia fazer. Sabia outrora fazer artigos
desafiando a censura, atacando o governo, exigindo democracia.
Onde
ficara tudo aquilo? Ali talvez estivesse a oportunidade para
recomeçar
algo de útil, voltar a escrever, influindo, participando.
Movimentada,
inteligente. Quanto mais gente lá estivesse, melhor. Conversaria
com
um e outro, contaria tudo que ouvisse.
Não durou muito o entusiasmo: teve a surpresa de encontrar o
velho sozinho, sentado na varanda, e desde o primeiro instante o calor
e
a simpatia com que foi recebido neutralizaram sua agressiva
disposição
de escrever fosse o que fosse.
— Reportagem? Mas como você anda fora do mundo! Já não
tenho mais nada com isso, meu filho, Deus me livre de política.
Desde
que deixei o ministério não me meti mais. Aceitei ser ministro
apenas
para servir à minha pátria. E servir ao presidente, meu amigo
pessoal.
Mas agora o presidente é outro... As coisas não andam nada boas,
meu
rapaz. Aqui, tome alguma coisa. Já soube que você gosta de um uísque.
Segurou-o pelo braço, levou-o à sala:
— A política só me deu aborrecimento. Fiz os maiores sacrifícios e
nem reconhecem. Almoçava apenas uma vez por dia! Quero dizer, não
tinha tempo nem de almoçar. Não entendo a orientação desse
governo.
Ainda agora estão dizendo que vão pedir uma comissão de inquérito
contra mim. Imagine! Dizem que isso é coisa do Sousa, aquele
menino
que foi eleito deputado. Logo o Sousa, não saía de minha casa! Não
acredito que o Sousa seja capaz de uma coisa dessas. Algum inimigo
meu, na certa.
— Na certa — repetiu Eduardo, para dizer alguma coisa. Nem
sabia quem era o Sousa. Mas o homem não conversava, estava
pensando em voz alta:
— E se a imprensa souber disso, adeus meu sossego. Aí é que a
comissão sai mesmo. Aliás, nada tenho a temer. Minha consciência
está
tranqüila. Sempre procurei cumprir meu dever. Mas então você quer fazer
uma reportagem? Quem sabe o Marques não poderia ajudá-lo?
Dizem que ele vai ser líder da maioria. Espera, vamos ver se o
Marques
está em casa. Aqui, tome outro. Sirva-se à vontade.
Foi ao telefone e discou um número. Onde aquele ministro
desempenado e seguro de si que o tomava pelo braço e dizia “me
conte
tudo sobre a morte da meretriz”? O Marques não estava em casa.
— Fica para outra vez — disse Eduardo, se erguendo.
— Espere, espere! — e o homem o reteve acaloradamente: —
Ainda é cedo! Você não contou nada. Então, como vão as coisas?
Como
vão as letras?
Forçou Eduardo a sentar-se de novo, terminar o seu uísque.
— Vocês andam sumidos, não aparecem!
Parecia buscar mentalmente um assunto que interessasse o
genro, como se temesse ficar só. Num inesperado movimento de
simpatia, Eduardo pensou em convidá-lo a sair, dar uma volta.
— O senhor é que nunca nos visita — arriscou apenas.
— Não saio mais, a não ser para ir à igreja. Às vezes vou a um
cinema...
Eduardo o olhou, surpreendido: jamais imaginara que aquele
homem fosse de igreja.
— Busquei o consolo da religião. A política me absorveu, mas
desde que perdi minha mulher me sinto muito só. Depois minha filha
se
casou... Mas vocês apareçam de vez em quando! Ela nunca mais
esteve
aqui.
— Outro dia mesmo ela veio jantar com o senhor.
Saiu dali deprimido, as idéias embaralhadas. Era cedo ainda e a
perspectiva de encontrar Antonieta lhe pareceu de súbito
insuportável.
Já não tinha o que lhe dizer e precisava isolar-se, tomar mais um
uísque, aguardar os acontecimentos, aguardar o inimigo.
— As coisas não vão nada boas, meu rapaz — repetia
mentalmente as palavras do sogro.
No bar, inesperadamente: Amorim, bebendo sozinho junto ao
balcão.— Você está parecendo um fantasma! — espantou-se o outro.
Pensou em escusar-se e sair: passara ali só por acaso, tinha
alguém à sua espera... Era tarde, porém. Amorim o forçava a sentar-se,
pedia um uísque para ele.
— Onde é que você se meteu?
— Por aí...
— Imagine que eu estava aqui pensando justamente em você.
Como vai indo Gerlane?
— Nunca mais vi.
— Estava pensando em telefonar a ela, chamá-la para tomar
qualquer coisinha comigo, imaginei que você...
— Não temos nada um com o outro, quem lhe disse isso?
— Bem, eu pensei...
Para fugir à lembrança de Gerlane, Eduardo lhe contou que vinha
da casa do ex-ministro, referiu-se à comissão de inquérito:
— Ele está preocupado, mas disse que não tem nada a temer. Isso
é coisa do Sousa, aquele deputado.
Mostrar-se a par da situação política: revelar que se interessava
por tudo, sabia o que pensar. Amorim agora era comentarista
político
num jornal.
— Mas veja lá, hein? isso não é para publicar. O Veiga me
encomendou uma reportagem sobre a situação, mas, francamente, as
coisas não vão nada boas: só se fosse para descer o pau. E isso
não
interessa ao Veiga...
Amorim lhe disse que estava pensando em fundar um jornal:
— Um jornal nas próximas eleições, bem orientado, toma conta
deste país. O homem vai voltar, você escuta o que estou lhe dizendo.
— O que você chama de bem orientado?
Foi para casa cansado de política, cansado de Amorim, cansado
mesmo de beber — era inútil: sentia-se cada vez mais lúcido, senhor
de
cada um dos detalhes da vida, só lhe faltando uma visão do
conjunto.
Antonieta ainda acordada, a esperá-lo:
— Então, fez a reportagem?— Antonieta — e sentou-se na cama, estudando a
melhor
maneira de dizer: — Seu pai se queixou muito, dizendo que você
nunca
mais foi visitá-lo. Você não disse que outro dia jantou lá?
— Tenho culpa se ele nunca pára em casa? Sempre que vou lá ele
não está. Outro dia jantei sozinha, porque ele não apareceu.
— Isso você não me contou.
— Você não me perguntou.
— Ele disse que não tem saído ultimamente — experimentou
ainda.
— Só se ultimamente. Mas e a reportagem?
Ele passou a mão pelo rosto, exausto:
— Estive com o Amorim...
Na manhã seguinte ela veio acordá-lo:
— O que você andou dizendo ao Amorim? Papai telefonou muito
aborrecido com você.
— O quê? Aborrecido comigo?
Mandou comprar o jornal: num dos tópicos do Amorim, o que lhe
dissera sobre o ex-ministro.
— Aquele canalha. Foi só eu pedir que não publicasse, saiu dali e
foi escrever. Mas ele vai ver comigo.
Somente à noite conseguiu se comunicar com o jornalista, pelo
telefone:
— Você não tem caráter, Amorim. Bastou dizer que não
publicasse.
— Mas aquilo não tinha a menor importância! — se escusava o
outro. — Na redação todo mundo já sabia.
— Não tenho nada com isso. Eu disse que não publicasse.
— Mas você não entende! Não era novidade nenhuma, segredo
nenhum. A comissão de inquérito foi pedida hoje!
— Eu disse que não publicasse! — repetiu Eduardo, enfurecido. O
outro estourou, afinal:
— Você não manda em mim, ora essa! Publico o que eu quiser.
— Porque você não tem caráter.— Não facilita comigo não, Eduardo.
— Vá ameaçar sua mãe.
— Não facilita não — repetiu o outro.
Desligou o telefone num terrível estado de nervos. Mal podia
conter-se. Antonieta o espreitava, alarmada:
— Também não fique assim! Afinal de contas, vocês são amigos.
— Amigos uma ova. Não sei por que acabei convivendo com um
sujeito desses. Cafajeste, ordinário. Em Belo Horizonte era repórter
de
polícia. Você já viu gente da polícia prestar?
— Mas se todo mundo já sabia.
— Ainda por cima você dá razão a ele.
Então Antonieta inesperadamente lhe propôs que esquecessem o
incidente e fossem dormir.
— A essa hora? — espantou-se. — Ainda é cedo...
Ela baixou os olhos.
— Não. Vou trabalhar um pouco.
Foi para o escritório, mas acabou desistindo ao fim de meia hora:
não conseguia ler nem escrever. Rendeu-se, afinal — e encontrou
Antonieta à sua espera.
NEUSA era a vizinha. Tinha dezessete anos, se fizera amiga de
Antonieta,
costumava aparecer de short, entrava pela porta da cozinha, andava
desenvoltamente pelos quartos. Às vezes invadia o escritório, dava
com
Eduardo sentado diante da máquina:
— “Genius at work” — gracejava, acomodando-se na extremidade
da mesa, em frente a ele. Mauro e Hugo vinham surpreendê-lo em
meio
ao seu romance, fazia tanto tempo. Agora não tinha Mauro, nem
Hugo,
nem romance. Neusa viva, saudável, inquietante. Um dia foi esticar
a
mão para apanhar um papel, sem querer deslizou os dedos pelas
coxas
dela. A menina não se incomodou, fez que não viu. Desde então sua
presença passou a ser um suplício:
— Isso é uma loucura — censurava-se ele, revoltado.Não resistia,
inventava pretextos para retê-la no escritório, longe
de Antonieta. Num sábado à tarde atirou todos os livros da estante
no
chão, chamou Neusa para ajudá-lo a arrumar:
— Fui mexer na estante, ela caiu.
E ficaram os dois, pretensamente atarefados em recolher os
livros, mas na verdade se encostando um no outro enquanto
amparavam a estante, e se ela abria um livro, fingindo ler, ele se
debruçava sobre seu ombro, colando-se a seu corpo, fingindo ler
também. Ficava alucinado de desejo, temendo descontrolar-se — o
escândalo que seria! Mais de uma vez deixou-a e foi trancar-se no
banheiro, antes que fosse tarde, usando Neusa na imaginação: era
uma
espécie de defesa, medida de precaução — dos males o menor. Depois
se arrependia como antigamente, sentia remorso:
— Tem cabimento isso, rapaz? — incriminava-se, com dureza: —
Na sua idade!
Mas acabava repetindo Mauro, amortecendo a consciência no
reconhecimento de que, justamente por não ser criança, não devia
ter
mais preconceitos — encarar tudo com naturalidade.
Neusa e sua pele jovem, macia, à mostra na roupa exígua.
Saberia o perigo a que se expunha? Por que o procurava com tanta
insistência, por que dissimulava?
— Ela está percebendo tudo, a safadinha — excitava-se ele.
Uma tarde em que Antonieta havia saído para a costureira, pediu
a Neusa que o ajudasse a trocar a lâmpada do escritório, que se
havia
queimado. Pôs a mesa sob o lustre. Vestia apenas um pijama fino e
a
lâmpada nem queimada estava.
— Não alcanço. Só se eu carregar você.
— Olha que nós dois caímos. Você me agüenta?
Neusa subiu na mesa, deixou que ele a erguesse, segurando-a
fortemente pelas coxas. Ela estava de short, e procurava desatarraxar
a
lâmpada, enquanto a mão de Eduardo tocava-lhe a pele entre as
pernas, o rosto apertava-lhe o ventre, e as narinas, ofegantes,
buscavam o sexo. Deixou que ela escorregasse entre seus braços e todo o
corpo dele tremia, mal se mantinha de pé, por pouco não tombaram
ao chão. Assim, um instante: ela também tremia, abraçada a ele, a
lâmpada mal segura na mão. Eduardo não resistiu mais e estremecia
já, num espasmo final, comprimindo o próprio sexo contra o dela.
— Cuidado, nós caímos — murmurou a moça aos seus ouvidos, e
fechou os olhos. A lâmpada tombou ao chão e explodiu.
Naquela mesma tarde Eduardo lhe pediu que não viesse mais à
sua casa:
— Espero que você compreenda por quê — disse apenas.
Antonieta estranhava a ausência da moça.
— Não quero que essa menina fique por aí, tomando intimidade
conosco.
— Por quê? Ela é tão boazinha.
— Não quero. Você parece que não pensa as coisas.
Ela parecia que não pensava as coisas. Ou talvez nem se
importasse. Mas agora as relações entre ambos iam ficando
inesperadamente acomodadas, o convívio se fazia mais fácil:
— Hoje vamos ao cinema — anunciava ele, depois do jantar, e ela
chegava a sorrir. Voltavam a sair juntos, iam ao cinema, visitavam o
pai
de Antonieta.
— Sabe, Eduardo? — dizia ele: — Gostaria de montar um
escritório de advocacia. Você viria trabalhar comigo...
A promessa feita ao pai, jamais cumprida.
— Pensei que o senhor tivesse se zangado comigo por causa
daquela noticia.
— Qual, bobagem — protestou o homem: — você viu? Não
apuraram nada contra a minha administração. Política é isso
mesmo...
Enfim, só tenho de prestar contas a Deus, a mais ninguém.
Ficava sentado na varanda, sozinho, triste porque os dois logo se
despediam:
— Voltem amanhã, sim? Por que não vêm almoçar comigo?
— Sabe de uma coisa? — dizia Eduardo, a sós com ela. — Seu pai
afinal de contas é um bom sujeito, não tem dúvida. É pena ter-se metido
em política. Ficou tão amargurado... Não sei quem, acho que foi
Guardini — aquele livro que eu estava lendo, sabe? — que disse: “o
homem que quer justiça tem de colocar-se em nível superior ao da
simples justiça”. Pois bem: isso serve para tudo. O homem que quer
fazer política, tem de se colocar em nível superior ao da simples
política.
Você veja, por exemplo, o problema do romance...
— Eduardo... — interrompeu ela.
— O quê?
— Até quando vai durar isso?
— Isso o quê? — estranhou ele.
Ela não respondeu. Foram para casa pensativos, mas se
juntassem todos os seus pensamentos, talvez não formassem com eles
uma só idéia, senão a de que já não obedeciam mais à própria
vontade,
mas cumpriam como autômatos o ritual de um destino certo. Um dia
ele encontrou Lêda, mulher do Amorim, num ônibus a caminho da
cidade.
— Eduardo, há quanto tempo!
Estava mais velha, acabada. Eduardo não sabia o que dizer; mal
a reconhecia — aquele rosto sem pintura, aqueles lábios outrora vivos
e
frescos, que ele num momento de loucura ousara beijar.
— Você também anda sumida — experimentou.
— Continuo morando em Niterói. E você, como vai indo? Que há
com você?
— Comigo? Nada. Por quê?
— Não sei, você está tão... diferente... Tenho ouvido coisas.
— Fala-se muito — gracejou ele.
— E Antonieta?
— Vai bem — e olhou-a, intrigado.
— Não sei, Eduardo, vocês dois me preocupam tanto... Não
gostaria que acontecesse com vocês o que aconteceu conosco. Lembrase
daquele tempo?
— O que aconteceu com vocês?
Ela sorriu tristemente:— O que aconteceu conosco... Você tem visto
Amorim?
— Estive com ele outro dia.
— E Antonieta? — insistiu ela. — Nunca mais estivemos juntas.
Um dia destes a vi numa confeitaria com um senhor de idade — nem
me reconheceu, parece.
Ele não respondeu. Na mesma noite, porém, perguntou a
Antonieta:
— Com quem você foi a uma confeitaria num dia destes?
— Confeitaria? Eu?
— Estive com Lêda, ela me contou. Disse que te viu com um
senhor de idade.
— Ah! — e ela se moveu pelo quarto, despreocupada: — Deve ter
sido papai. Me encontrei com ele na cidade, fomos tomar chá.
— Isso também você não me contou.
— Por que haveria de contar? Você não me perguntou.
— Estou perguntando agora.
— Então pergunte — desafiou ela: — O que você está querendo
saber?
Ele respirou fundo.
— Onde está morando o Germano, por exemplo. Gostaria de
procurá-lo.
— Isso você já me perguntou.
— E você disse que era no Hotel Pálace.
— Então procure no Hotel Pálace. Mais alguma coisa?
— Antonieta, eu... — e não pôde prosseguir. A voz lhe faltava, um
soluço atravessou-lhe a garganta. As coisas perdiam o sentido, a
realidade lhe escapava, e era preciso uma verdade qualquer, uma
verdade concreta, acessível e sem mistérios a que se agarrar, para
não
ser tragado.
— Eu não agüento mais, Antonieta — disse ele, com esforço,
passando a mão pelo rosto num gesto de cansaço.
— Não precisa ficar assim. Descansa um pouco. Amanhã nós
conversamos sobre isso.— É preciso que você me ajude.
— Sinto muito, mas não posso fazer nada por você.
— Então eu estou perdido, eu estou perdido — e ele escondeu o
rosto nas mãos. — Não sei mais nada, não conto com mais ninguém...
— Amanhã nós conversamos — repetiu ela.
— Você promete? — ele pediu, submisso.
— Amanhã você saberá de tudo.
— Amanhã talvez seja tarde...
— Não é não — encerrou ela, absorta, e acrescentou, olhando o
relógio: — Já é tarde, eu vou dormir.
— Sempre é tarde. Sempre é tarde — dizia ele para si mesmo, já
sozinho no escritório, cercado de fantasmas. E entregou-se a uma
de
suas crises de choro, a mais longa e violenta, que durou quase toda
a
noite. A manhã veio encontrá-lo adormecido na poltrona.
TEVE a surpresa de dar com o velho hotel fechado aos hóspedes,
pronto
para demolição. Pelo aspecto todos já se haviam mudado. Restava
apenas um porteiro de vigia no prédio abandonado.
— Não há mais ninguém morando aqui? — perguntou.
Encontrou o velho sozinho num quarto do hotel vazio — pareceulhe
extremamente agitado.
— Mas já não há ninguém morando aqui — disse-lhe Eduardo,
perplexo.
— Por que você insiste em me procurar? — e Germano andava de
um lado para outro, num roupão usado. Tomava longos goles de
uísque, servindo-se da garrafa sobre a mesa. Não parecia seguro de
si,
sua voz se alterava, devia estar bêbado. — Me deixe sozinho no meu
canto, pelo amor de Deus, vá embora.
— Antonieta — disse Eduardo apenas.
— Converse com ela e não comigo.
— Não há mais conversa possível entre nós dois.
— Nunca houve. Você nem sequer a conhece.— Pois então? — e Eduardo
sentou-se na cama.
— Pois então converse sozinho, mas não comigo. O que você quer
de mim?
O velho sentou-se a seu lado, sem olhá-lo, sacudiu a cabeça:
— Não tenho nada a lhe dizer. Você jamais saberá nada, você não
é capaz de saber coisa nenhuma desta vida.
— Por quê?
— Porque você se julga dono de seu destino, e ninguém é dono de
coisa nenhuma neste mundo. Eu por acaso sou dono do meu? Não faço
coisas que por si já são destinos? Ninguém conhece ninguém, nem a
si
mesmo, a cada passo nos surpreendemos, nos desmentimos, negamos o
que um minuto antes nos pareceu a última das verdades. Olhe, só há
uma verdade essencial, e essa a gente gasta a vida toda
procurando,
quando ela está montada no nosso ombro como uma cruz. Só um cego é
que não vê. Eu estou morando sozinha neste hotel: todos os hóspedes
já
foram embora, só eu fiquei, pedi que me deixassem mais uma semana,
só preciso de uma semana. Pois aqui estou eu, e os ratos. Há ratos
por
todo lado — às vezes passeio pelos corredores vazios, entro num
quarto
e noutro, tudo vazio, parece um navio abandonado, vai afundar. De
noite fico quieto aqui no meu canto, não há luz, desligaram tudo,
breve
começam a demolir. Vejo até morcegos nos beirais do telhado, onde
antigamente moravam pombas. O prédio estala e geme de velhice,
parece que vai morrer...
— Por que não se muda? — perguntou Eduardo, impressionado.
— Para onde? Para quê? Estou cansado...
E o velho se estendeu na cama, prostrado. Em pouco ressonava
pesadamente, a boca aberta, exalando álcool, o peito magro
arfando.
Eduardo o olhou durante algum tempo — tentando decifrar o enigma
que era a máscara de um homem. Cobriu-o com a colcha, antes de
sair.
À porta perguntou ao vigia:
— Não seria melhor que vocês mudassem o velho logo de uma
vez?
Escurecia sobre a cidade. Em vez de ir para casa, tomou insensivelmente
o caminho do bar. Precisava beber alguma coisa, que já
não se agüentava de aflição. Encontrou Térsio em companhia de dois
ou
três conhecidos — um deles Aragão, o aviador:
— Lembra do Rodrigo, aquele amigo seu? Foi encontrado.
— Encontrado? — saltou Eduardo.
— Retiraram afinal o avião do mar, o corpo estava preso na
cabine. Ele ficou enganchado, não conseguiu sair.
— Mas o telegrafista disse que o viu nadando! — protestou
Eduardo. — Na época do desastre todos os jornais...
— Foi engano: afundou com o avião, não chegou a nadar. Então
Rodrigo não chegara a nadar. Inútil e sem sentido o sofrimento de
dois
dias e duas noites seguidas, o companheiro perdido na imensidão do
oceano, enfrentando a fúria das ondas, nadando, sempre nadando,
como antigamente a seu lado... Já estava morto, afogado dentro do
próprio avião, nem ao menos chegara a nadar. Sentiu certo alívio
ao
descobrir que há sofrimentos inúteis também, gratuitos,
imaginários,
cuja causa já se extinguiu como a da luz de uma estrela, ou que
nem
sequer chegou a existir. Em casa contou quase jovialmente a Antonieta:
— Sabe? Encontraram o cadáver de Rodrigo.
— Quem? — assustou-se ela.
— Rodrigo. Não chegou a nadar, ficou preso no avião. Agora,
porém, Aragão já não falava no companheiro morto e sim na própria
Antonieta — dirigia-se a Térsio, apontando Eduardo:
— Esse aí eu conheci em Uberaba, já faz muitos anos, morto de
paixão pela namorada... Ele ficou no meu quarto, não havia lugar no
hotel. Contribuí muito para o casamento deles, não tenha dúvida.
Foi
ou não foi, Eduardo? Eu era amigo de Antonieta... Ela sempre dizia
que
se tivesse de casar haveria de ser com um artista. Pois não foi mesmo?
— Você dizia que se tivesse de casar haveria de ser com um
artista? — perguntou ele.
— De onde você tirou isso? — estranhou ela.
— Aragão me contou. Aquele seu amigo, estive com ele hoje.
— É possível... Coisa de menina.— Eu não sou artista.
— Que bobagem é essa? Você não é escritor?
— Escritor é quem escreve. Eu não escrevo nada. E não sou
artista nem aqui nem na China.
— O que você é, então? — disse ela, rindo ante o seu tom
desalentado.
— Funcionário da Prefeitura.
— E daí?
— Você se casou com o homem errado. Olha, Antonieta, preciso
ter uma conversa com você.
— Você bebeu?
— Um pouco, não muito. Ontem você prometeu que...
Foi interrompido pela campainha do telefone. Ambos se voltaram.
Tudo se precipitava.
— Deve ser Amorim — disse ela: — Já telefonou três vezes para
você.
— Amorim?
— É. Olha, Eduardo, estive pensando...
— O que é que ele quer?
— Não sei — e ela pôs-se a falar depressa, antes que ele
atendesse: — Se eu lhe pedir uma coisa você faz?
— Depende.
— Depende de você — segurando-o pelo braço.
— Então pede — já com a mão no fone.
— Queria que você não saísse mais hoje.
— O quê...
— Queria que você...
— Alô! — disse ele ao telefone.
Era Amorim:
— Gerlane está comigo aqui no bar, me pediu que ligasse. Você
quer falar com ela?
— Não.
— Então venha para cá.Eduardo repôs o fone no gancho lentamente e fitou
a mulher com
olhos distraídos:
— O que é que você estava dizendo? — perguntou afinal,
enquanto vestia o paletó.
— Nada. Você vai sair?
— Vou. Ele disse que precisa muito falar comigo. Deve ser por
causa daquela nossa discussão. Preciso ir, fui muito estúpido com
ele
naquele dia.
Aproximou-se da mulher, vendo que ela não se movia, despediuse com um
rápido beijo na testa:
— Amanhã nós conversamos.
Como ela não dissesse nada, voltou-lhe as costas e saiu. Sem
olhá-la uma última vez.III - A VIAGEM
No PRINCÍPIO limitou-se a aceitar passivamente seu novo estado:
relaxava
o corpo, abandonava o espírito e deixava que as idéias flutuassem
soltas, sem tentar ordená-las em torno de qualquer pensamento
objetivo. Ficava andando pela casa, barba crescida, sem hora certa
de
comer ou dormir, olhando uma coisa e outra, o armário da mulher
completamente vazio, a ausência dos objetos dela nas gavetas e na
penteadeira, o lugar que ela antes ocupava na cama a seu lado.
Impregnado de solidão, sentiu, afinal, mais nos olhos da empregada
que
o observava perplexa do que propriamente nas exigências de sua
condição, que precisava reagir, fazer alguma coisa, readaptar-se.
Começou por despedir a empregada. Depois, passado o estupor dos
primeiros dias, para que a lembrança não o martirizasse, buscou
distração em martírio maior, privando-se do cigarro, impondo a si
mesmo um sistema rígido de disciplina: passou a dormir no
escritório,
acordava cedo, tomava banho frio, fazia a barba e ia para o trabalho.
Na
volta, mais de uma vez resistiu ferozmente à necessidade de beber.
Não
queria ver ninguém, evitava até mesmo as proximidades do bar — e
sabia que beber sozinho naqueles dias seria a sua perdição. Fazia
as
refeições no restaurante da esquina e em casa punha-se a ler com
uma
obstinação quase física, mas como a atenção se recusasse, mais
obstinada ainda, castigou-se buscando estudar alguma coisa de árido
e
penoso, elegeu o latim.
— Labor improbus omnia vincit.
Não pensar, não pensar de maneira alguma — se impunha,
andando de um lado para outro e recitando em voz alta declinações
já
meio esquecidas, até que o cansaço e o sono o vencessem. Quem o visse o
tomaria por louco — e nunca se sentira tão asceticamente lúcido, tão
ciente de si, de sua força e de suas limitações. Até que, uma
manhã,
resolveu procurar Antonieta de novo, e aceitou serenamente a
idéia,
embora sem saber o que lhe diria desta vez.
Marcou a visita pelo telefone, conforme a estrita regra de conduta
que se tinham imposto, mas teve o cuidado de escolher uma hora em
que o pai não estivesse em casa.
— Você conversou com ele? — perguntou, ao vê-la. Procurava ser
o mais objetivo possível.
— Conversei.
— Quer dizer que para ele eu não estou mais em viagem.
— Não. Contei a verdade. Ficou muito triste, mas eu convenci a
ele de que não havia nada a fazer, era melhor assim. Você tornou a
falar
com o advogado?
— Ele ficou de telefonar quando os papéis estivessem prontos.
Escuta, Antonieta...
Calou-se, sem saber o que dizer. Olhando-a, notava pela primeira
vez que ela se vestira para recebê-lo: usava um vestido verde,
tinha
brincos e um colar. O cabelo também estava diferente, fora cortado.
Ele
era uma visita, simples visita — e nem um mês havia passado. Em
silêncio, ela esperava que ele continuasse, preocupada e já na
defensiva.
— Você cortou o cabelo — comentou ele, idiotamente.
Aliviada, ela passou a mão pelos cabelos, num gesto seu de
antigamente, o primeiro:
— Cortei e já estou arrependida — sorriu. — Mas, e você? Está se
dando bem na sua vida de solteiro?
Não havia no tom de sua voz um mínimo de ironia, mas ele não
entendeu assim:
— Não estou levando vida de solteiro — respondeu, subitamente
irritado: — Estou levando vida de viúvo. Vida de solteiro eu levava
com
você.
Levantou-se como se fosse sair sem despedir-se. Não sairia, contudo;
também era nele apenas um gesto de antigamente, que ela
logo reconheceu:
— Não precisa se zangar. Afinal, já conversamos tanto...
Ele andava ao longo da sala.
— Antonieta — recomeçou, buscando as palavras: — Eu quero
saber apenas uma coisa. Se você... Se sua resolução é definitiva.
— Já conversamos tanto — repetiu ela, com um suspiro
resignado.
Ele se deteve em frente à mulher, decidido, olhando-a nos olhos:
— Então me responda a uma última pergunta, para que eu saiba
ao menos o que pensar. Você está gostando de alguém?
Ela desviou os olhos:
— Eduardo, por favor. Não vamos recomeçar. Você já me
perguntou isso. Já lhe disse que não houve nada, já lhe provei, você
me
disse que não houve nada, já nos convencemos disso, que mais que
você quer?
— Você não me respondeu.
— Já lhe disse que não! — gritou ela afinal, transtornada,
erguendo-se e encarando-o: — Você não quer acreditar, paciência!
Pode
ter a certeza de que se eu tivesse de gostar de alguém não haveria
jamais de ser de você.
Ele ficou imóvel, a olhá-la estarrecido.
— Por que então você se casou comigo?
— Não sei. Porque eu era muito criança, não sabia o que estava
fazendo. E por favor vá embora, me deixe sozinha.
Ele ficou em silêncio, a olhá-la estarrecido.
Sua vida terminava naquele instante.
Voltou-se em silêncio e caminhou para a porta.
— Eduardo — ouviu que a mulher o chamava e se deteve, assim
de costas, para o que ela tinha a lhe dizer: — Não quis magoar você,
me
desculpe, estou nervosa, mas por favor compreenda, você mesmo é
culpado, fica insistindo, insistindo...
— Não tem importância — balbuciou, e sua voz morreu num engasgo. Ela
avançou para abrir a porta e ao dar com seu rosto
crispado e subitamente envelhecido, os olhos esgazeados a fitá-la
como
à procura de alguém, teve pena, num gesto hesitante tocou-lhe o braço:
— Não ligue para o que eu disse. Por favor, esqueça.
Ele chegou a sorrir, agradecido:
— Não tem importância — repetiu, a voz sumida. Voltou-se em
direção ao elevador, mas ela, apreensiva, o deteve ainda:
— O que pretende fazer?
— Não sei... Como haveria de saber? — e, constrangido, evitava
olhá-la pela última vez: — Sabe, Antonieta? Estive pensando, estou
com
vontade de fazer mesmo uma viagem...
EM VEZ de extenuar-se no estudo ou na leitura até que o sono
viesse,
acendeu então o primeiro cigarro e pôs-se deliberadamente a pensar
no
que lhe acontecera, como a ver se encontrava entre os restos do
desastre alguma coisa pela qual continuar a viver.
— É inútil, Eduardo.
— Vamos ser razoáveis.
— Tinha que acontecer.
Agora ele está andando pelo apartamento vazio. Tudo nos seus
lugares. Acende as luzes à medida que avança, observa
meticulosamente os móveis, os livros na estante, um grampo de
Antonieta esquecido no parapeito da janela, quase um mês e o
grampo
ali na janela, já enferrujado. Tinha de acontecer.
— Vamos ser razoáveis — repetia, para si mesmo.
Uma noite, tomado de súbita decisão, foi ao telefone e discou para
Gerlane.
— Preciso muito falar com você — pediu, num tom grave.
— Eu tenho mais o que fazer, Eduardo — e ela desligou.
Atordoado, ele ficou ainda um instante com o fone na mão. Bem,
se é assim — e afastou-se afinal do telefone assobiando baixinho,
esfregando as mãos, embora seus olhos se turvassem de lágrimas: aquilo
também estava resolvido, nada mais a fazer. O que era preciso é
que não se sentimentalizasse, ora diabo, não começasse a se sentir
um
pária, repelido por todo mundo, não era isso mesmo? um miserável,
ora
tinha graça, um pobre coitado sem ninguém — e já falando em voz
alta
palavras soltas, enquanto arrumava a mala em passinhos lépidos
entre
o armário e a cama:
— Meias. Camisas. Cuecas? É isso mesmo. Não analisa não. Põe
isso aqui... isso aqui... e isso aqui... O que mais? Se eu tivesse de
gostar
de alguém... Dane-se! Toca para frente: dois lenços. Tenho mais o
que
fazer, Eduardo. Está bem, está bem, sua vaca. Só porque eu não
quis...
Uma gravata, duas, mais umazinha só... E pronto, acabou-se. Não
quis
o quê? Ah, Gerlane. Não se deixar abater. Algum livro? Térsio
tinha
razão: mulher, quando começa assim... Não, que livro nada! Nem
passado e nem futuro, a vida presente, minha enfim, liberta, sem
limitações. E chega! Descansar um pouco, ainda é cedo.
Assim mesmo vestido, esticou-se na cama para aguardar a
manhã.
A seu lado, ia um homem corpulento, bem vestido. Os demais
passageiros se entreolhavam e estabelecia-se aquela muda
solidariedade dos que secretamente esperam em Deus que o avião não
caia. Apertavam em silêncio os cintos de segurança, enquanto o
aparelho deslizava para a pista. O homem a seu lado respirava
desconforto, olhando duro para a frente; quando os motores
ganharam
força, preparando-se para a decolagem, ele relaxou o corpo na poltrona,
tentando aparentar displicência, e lançou a Eduardo um olhar de
curiosidade. Eduardo fingiu-se distraído. Agora que o avião corria
pela
pista quase a desgarrar-se do solo, o homenzarrão não resistiu e levou
a
mão à testa como se consertasse o cabelo, ao peito, depois ao
ombro
esquerdo como se tirasse um cisco do paletó, ao ombro direito e
finalmente à boca, como se roesse a unha... Era o sinal da cruz
mais
camuflado de que ele seria capaz. Eduardo fingiu que não via nada,
mas persignou-se também, abertamente, a mão espalmada para que o
homem visse, enquanto o avião ganhava altura. O homem então o imitou,
feliz, e respirou aliviado, Voltando-lhe um olhar solidário que
era quase que um agradecimento. Eduardo se sentiu mal: cínico,
fingido, hipócrita — não se importava se o avião caísse.
Encontrou a cidade diferente, mudada. Agitação pelas ruas,
prédios novos, gente andando para lá e para cá, como se realmente
tivesse urgência de ir a qualquer parte. Os elevadores funcionavam
todo
o tempo:
— Andares! — gritava o ascensorista, e ia dizendo: primeiro!
segundo! terceiro! quarto! e assim até o vigésimo, quando então a
porta
se abria: terraço! Vejam só que bela vista.
Depois alguém lhe batia no ombro:
— Você por aqui? Vamos tomar um café.
Era o Veiga. Estava gordo, meio calvo, e era diretor do jornal.
— Que tal se você iniciasse uma série de artigos no suplemento?
Você sabe, não podemos pagar, mas enfim... Só que não pode ser de
ataque ao governo.
O único que ainda acreditava ser ele um escritor... Veiga não
tinha nada a lhe dizer. Eduardo também não tinha nada a dizer ao
Veiga, não tinha nada a dizer à sua mãe, não tinha nada a dizer a
ninguém:
— Meu filho, o que aconteceu com você? Onde está sua mulher?
Ouvi dizer que você está morando sozinho.
A velha, acabada, doente, sempre com os parentes na Serra. Toda
chorosa, abraçando-o:
— Escrevi três cartas para você, você nem ao menos se digna de
responder.
— Não recebi, mamãe.
Teria recebido? Não teria? Nem se lembrava. Nada importava
mais, senão que haviam acabado com o banco da Praça. O novo
prefeito
fizera um estrago no jardim, pondo abaixo as belas touceiras de
antigamente, substituindo tudo por uma grama rasa, bem aparada,
ridícula. Os bancos agora eram de mármore, como túmulos. Nada mais
o ligava àquele lugar:— Chegou a hora de puxar angústia.
Chegou a hora. Mocidade velha, cansada, desnorteada, exaurida,
quando chegaria enfim a tua hora? Quantos séculos de angústia
coletiva te fizeram? Quantas horas de aflição foram vividas, quantos
corações se extenuaram no amor e na esperança para te entregarem
desamparada ao mundo novo? e que será de ti neste mundo? que será
do mundo? Perguntas sem resposta e sem sentido que ele largava na
praça avermelhada pelo crepúsculo. “Aqui outrora retumbaram
hinos”,
pensou, e logo se afastava dali. O fruto que apanhara ainda
verde...
Nem verde, nem maduro, nenhum fruto colhido: um livro cem vezes
começado, um filho abortado, um casamento dissolvido. Para isso
vivemos... Nada mais terrível do que não ter nascido! ele dissera um
dia.
E agora? Agora só a liberdade importava: liberdade de um dia olhar
o
outro nos olhos e dizer: és tu — reconhecê-lo, identificar-se com ele
logo
que o encontrasse e enfim se deixar viver numa enfim conquistada
disponibilidade, que a vida em si mesmo justificava. O anonimato,
por
exemplo, era uma antevisão do paraíso — andar desconhecido e livre
pelas ruas, ninguém o identificava, ninguém que parasse a todo
momento para:
— Então, como vão as coisas?
— Não tão bem como você...
— Quando chegou?
— Como vai Antonieta?
— Ainda fica aqui algum tempo?
Algum tempo. Mauro, casado, morando num bangalô:
— Estou trabalhando no Pronto-Socorro, dirigindo a seção de
radiologia. Hugo me chama de fotógrafo... Temos uma equipe muito
interessante, uma boa turminha. Vou te levar lá um dia desses,
para
você ter uma idéia do que pode acontecer numa cidade em apenas uma
noite... Você, que é escritor, precisa ver um plantão do Pronto-Socorro.
Eduardo mudou de assunto:
— Você nunca mais tomou daqueles porres colossais?
— Qual o quê — disse Mauro rindo: — Minha mulher é só farejar bebida,
põe a boca no mundo. Mas não me chateia em nada, pelo
contrário: é uma boa figura, você vai ver.
A mulher de Mauro era filha de portugueses, falava com ligeiro
sotaque. Calada, humilde, levantava-se a todo momento para ir à
cozinha, voltava à mesa de jantar:
— Meu marido me contou que ele e o senhor foram grandes
amigos — foi tudo quanto disse. — O senhor é médico?
— Que médico nada! — Mauro, rindo, respondeu por ele: —
Eduardo é poeta, minha filha: e não chama de senhor não, que ele
não
é tão velho assim...
— Poeta é você — disse Eduardo: — Eu nunca fui.
— Imagine que essa aqui — disse Mauro, dando uma palmadinha
carinhosa na mulher — foi fazer uma limpeza nas minhas coisas,
encontrou uma pilha de poemas meus, jogou tudo fora pensando que
era para jogar fora. Nesse dia tomei um porre, para celebrar o
acontecimento. Um vastíssimo porre, durou uma semana. Mas foi o
último. Foi ou não foi, galeguinha?
— Foi — confirmou ela.
— Você não sente falta, não? — perguntou Eduardo.
— De quê? Da bebida?
— Do poeta em você.
Mauro deu uma gargalhada:
— Deixa de literatura para cima de mim! Olha que eu sou macaco
velho nessas coisas.
— Para mim, na calada da noite, você ainda medita seus
versinhos.
— Cadê tempo, rapaz? Fico batendo chapa o dia inteiro! Tanta
perna quebrada neste mundo de Deus, você nem imagina. Eu por mim
prefiro me realizar no pé quebrado diretamente.
— Esse é infame — protestou Eduardo, e ambos riram. Moviamse cautelosos
na sua nova forma de conviver:
— E o terrorismo? — lembrou Eduardo.
— É isso mesmo... O terrorismo...Findo o jantar, sentaram-se na varanda
e para celebrar a ocasião,
Mauro desafiou a mulher mandando buscar na venda uma garrafa de
conhaque.
— Você já esteve com Hugo? — perguntou, antes que Eduardo
partisse: — Se estiver com ele dê meu abraço, diga para aparecer.
Nem
conhece minha mulher, aquele safado.
Encontrou Hugo cercado de jovens na leiteria:
— Não vejo Mauro há mais de um século. O carcamano acabou
um bom burguês, ganhando dinheiro à custa da desgraça alheia. E
nós
que esperávamos dele no mínimo um Maiakovski!
— Nossa missão era outra, talvez — disse Eduardo, fitando o
amigo: estava mais velho, os cabelos já um tanto ralos, via-se que
ficaria calvo.
— A poesia é que era outra — comentou baixo um dos jovens.
Eduardo ouviu e se inclinou, interessado.
— Como?
— Estava falando aqui com ele — esquivou-se o outro.
Hugo o preveniu com um sorriso:
— Não facilita com eles, não, Eduardo... São concretistas.
— O que é preciso é conduzir a linguagem verbal a uma condição
de experiência orgânica — concedeu o jovem.
— Experiência orgânica? O que é isso?
— Poesia não é a notícia de determinada emoção poética ou da
coisa que a provocou. Poesia é a própria emoção poética integrada
na
coisa que a provocou. A linguagem diz de uma visão especial das
coisas
— formulação colocada no extremo de uma série contínua e
ascendente
de intelecções.
— Ah... — e Eduardo desistiu de entender, voltou-se para Hugo:
— E você, não tem escrito nada?
— Só pontos de aula. E algumas teses: vai haver uma
homenagem ao reitor e estou escrevendo o discurso de saudação no
qual abordo a reforma do ensino, gostaria que você visse.
— Não, muito obrigado. Ainda me lembro da última homenagem ao reitor de
que participei, você não se lembra?
— Se me lembro... Mauro foi de uma grosseria! E o pior é que
ainda é o mesmo reitor — hoje somos bons amigos. Lá na Faculdade
estamos realizando um trabalho interessante...
— Mauro me disse a mesma coisa.
— Sobre a Faculdade? — espantou-se Hugo.
— Não; sobre o Pronto-Socorro.
O jovem continuava:
— Poesia é, pois, a concretização em linguagem verbal dessa
realidade última contida nas coisas. Tomemos por exemplo esta
garrafa.
O conceito que fazemos desta garrafa.
No dia seguinte era o Toledo:
— Não sei o que eles pretendem, nem quero saber. Estou velho
para essas novidades. Em verdade já nasci velho, como você. A
diferença é que você tem uma chance e eu não tenho.
— Que chance eu tenho?
— A de romper com seu passado. Abrir mão de tudo o que vem
constituindo você: sua sinceridade, sua fidelidade a si mesmo. O que é
a sua sinceridade? A sinceridade de quando você não sabia nadar ou
de quando você se tornou campeão?
— Hoje não sou capaz de nadar mais de duzentos metros —
sorriu ele.
— Pois nade esses duzentos metros. Não se detenha diante de
nada. Comece enquanto é tempo, rompa com tudo e cora todos! Quero
você capaz de mijar na minha sepultura.
— Que devo fazer? — perguntou ele, impressionado.
— Não blefe. Jogue todas as cartas na mesa. Não fuja. Não tenha
medo de perder. Nada mais digno do que, tudo feito, depois que não
se
poupa nada, saber dizer: perdi. Porque essa é a grande verdade:
perdemos sempre...
— Eu não nasci para perder.
— É um bom começo saber isso: não ter medo de nada, nem de
morrer. Você tem medo da morte? Então desista de uma vez, porque morrer
não tem importância — Mário de Andrade morreu e está mais
vivo do que eu, do que você. Estou repetindo palavras dele! Tenha
medo
é dos escorregões. Não escorregue, caia de uma vez. Os medíocres
apenas escorregam. Os bons quebram a cabeça. Você é dos bons. Pois
vá em frente! Pague seu preço e Deus o ajudará.
— Estou pensando em fazer uma viagem — disse ele, pensativo.
Mauro o saudou alegremente pelo telefone:
— Então quando é que aparece de novo? Depois que você saiu,
fiquei triste como o diabo, enxuguei sozinho aquela garrafa de
conhaque. Não resisti, acabei saindo à sua procura por tudo quanto
é
bar. O resto, já se sabe: tomei um daqueles porres homéricos de
que
você falava, estou escornado até agora.
Eduardo falou-lhe no encontro:
— Ah, sim, no Ginásio... Me lembro de qualquer coisa. Mas por
que você não aparece?
Despediu-se do amigo pelo telefone mesmo. E foi ao Ginásio, ao
encontro marcado. Havia um terceiro de quem os dois nem mais se
lembravam. Monsenhor Tavares morto. Na natureza nada se perde,
nada se cria. Lago Titicaca, Popocatepelt — Fujika Mosaka não era
ilha
do Japão, era a japonesinha assassinada. Todo corpo mergulhado num
fluido.
— A lua banha a solitária estrada.
Raimundo Correia não era poeta modernista. A poesia é uma série
contínua e ascendente de intelecções... Formulação de uma visão,
fusão
de intelecção, linguagem verbal, experiência orgânica. Experiência
orgânica era comer, beber e dormir. Poesia era água, alimento,
suor,
urina e fezes. Quem era mesmo o terceiro no encontro marcado?
O prédio, assim fechado, pareceu-lhe triste e envelhecido — não
havia alunos, estavam em férias. Havia um poste de iluminação à
entrada principal, o globo não fora quebrado. Agachou-se, apanhou
uma pedra e atirou-a. Errou o alvo e foi-se embora, envergonhado,
temendo que alguém tivesse visto.
Partiu no dia seguinte, de trem.— Você escreve, meu filho. Dê notícias.
Essa sua viagem para o
estrangeiro... Antonieta vai também?
Antes passou pela piscina do clube, também vazia. Rodrigo não
chegara sequer a sair do avião. O porteiro o reconheceu:
— Pode entrar, andar aí dentro à vontade.
Não havia o que ver. No quadro de honra do clube seu nome fora
substituído. Estavam construindo uma nova arquibancada que
comportaria o dobro de espectadores. Chico, o roubeiro, sempre o
mesmo, sacudindo a cabeça:
— Nadador como o senhor, nunca mais teve não.
O cemitério — seu Marciano enterrado ali, na terceira sepultura a
contar da esquerda. Deixou um ramo de flores ao pé da cruz, voltou
para o carro que o esperava no portão:
— Depressa, para a estação.
Saiu da cidade como de um cemitério.
Por pouco não perde o trem. Que idéia, essa, voltar de trem...
Professor Feitosa, quando foi isso? Feitosa ou Leitosa, não se
lembrava:
da Faculdade de Medicina. Naquele tempo viajava sem leito — era
pobre, era alguém que vinha de um lugar e ia para outro, tinha um
destino certo, uma missão a cumprir. Subitamente decidiu saltar em
Juiz de Fora.
— Com licença, com licença...
Abriu caminho entre os passageiros que embarcavam em Juiz de
Fora, era uma família inteira: um pai se esbofando com as malas,
uma
senhora gorda, três ou quatro meninos...
— Eduardo!
Parou, olhou para trás... O trem dava sinal de partida. Quem o
chamava?
— Com licença...
Era a mãe dos meninos que lhe sorria, toda afobada e risonha.
Letícia? Não, aquilo também era demais. Sentiu um aperto na
garganta,
uma vontade de chorar. Ajudou-a a entrar, contendo a porta do
vagão,
sorriu enquanto lágrimas lhe saltavam dos olhos. Abaixou a cabeça para
que ela não visse e ganhou rápido a plataforma da estação. Não
tivera coragem de lhe dirigir uma palavra. Pensou confusamente que
ao
passar pela porta ela comprimira contra ele os seios fartos,
gordos,
aqueles mesmos que ele vira um dia pequeninos, despontar sob a
fina
blusa de jérsei. Mas o que viera fazer ali, em Juiz de Fora, àquela
hora
da noite? Eu te amo eternamente — ela escrevera na sua caderneta.
Foi
seguindo a pé a rua Halfeld, em direção ao hotel, curvado ao peso
da
mala. Enfim, tanto fazia seguir como ficar. Poderia ficar morando
ali
para sempre. Ninguém teria mais notícias dele e o pior, ninguém
daria
pela sua falta. Jadir morto com dezesseis anos! Suicidara-se por
causa
de uma mulher.
— Não, por uma noite: embarco amanhã para o Rio.
— O senhor não é o tenente Marciano?
Então o porteiro se lembrava dele! Seria sempre reconhecido pelos
porteiros.
— Não. Isto é...
Na manhã seguinte foi visitar o quartel de cavalaria.
— Eu servi aqui — explicou ao sentinela. — Alguns anos atrás.
Gostaria de dar uma olhada...
O sentinela chamou o oficial do dia.
— O que o senhor deseja?
Quando falou em cavalaria:
— Mas deve ter sido há muito tempo! Há anos que somos da
motorizada.
E convidou-o a entrar. As baias haviam sido transformadas em
garagens. Em vez de cavalos, tanques e jipes. O oficial, tomado de
simpatia, explicava:
— Isso aqui... Aquilo lá...
— Houve um concurso de saltos. Não ganhei: quem ganhou foi o
tenente Meireles, de Três Corações.
— Meireles? Deve ser o major Meireles — foi nosso comandante.
Mas isso não tem a menor importância! — pensou. Não tem a
menor...— Muito obrigado...
— Não quer ver lá dentro?
— Não, só dar uma espiada... Muito prazer, hein? Muito obrigado,
hein?
O oficial bateu-lhe no ombro, jovialmente:
— É isso, meu velho, o tempo dos cavalos já passou.
Ora, eis que esse homem falou alguma coisa: o tempo passa e os
cavalos também. E nós os cavalões comendo! Isso era um verso. A
poesia, formulação da fusão da intelecção. Que ele era meio burro!
Burro, besta, cavalo. Eduardo Marciano, cavalo que passa. Mas
romancista — romancista é diferente, não precisa saber nada disso,
basta ir dizendo as coisas como elas acontecem: minutos após a
entrada do conde, a marquesa sorriu e disse: — Como vai? Minutos
após a entrada do conde. Como vamos? Minutos após a entrada. Como
pois entretanto marquesa, como vai a senhora, exclamou o conde.
Quem não tiver coragem de escrever isso não é romancista. Por isso
Paul Valéry não era romancista. Minutos após... de repente se
lembrou
de Helga:
— Era loura e alta... Chamava-se Helga, e era bonita como um
cavalo.
O porteiro não parece lembrar-se:
— Tanta moça loura e alta que passa por aqui...
— O pai dela era dono de uma porção de fábricas... Era a moça
mais importante da cidade.
— Então deve ser a filha de seu Koetz — sugeriu o porteiro. — O
escritório dele é ali no fim da rua. Ela trabalha lá. Hoje não é
importante, não. Passa aqui em frente todo dia.
— Ainda é bonita?
— Bem...
Não era um escritório, era uma espécie de depósito de
mercadorias: caixotes por todo lado, poeira, penumbra. Ao fundo um
estrado, duas ou três mesas, dois ou três empregados, uma mulher. O
tempo dos cavalos havia passado.— Helga...
Ela ergueu a cabeça — custou a reconhecê-lo. Os cabelos eram
louros, ela era alta, aqueles lábios ele havia beijado.
— Não se lembra de mim?
— Me lembro, você andava fardado.
— Eu era tenente — disse ele.
A pele já não era fresca — meio áspera, terrosa. Os lábios agora
mais finos, o cabelo mais escorrido — o vestido preto.
— Você está de luto?
— Estou: mamãe morreu há dois meses.
Não tinham o que dizer, e evitavam olhar-se. Ela se fingia
distraída com o lápis.
— Você se casou, não? Eu soube...
Ele sorriu, depois explicou:
— Imagine que eu ia para o Rio e de repente resolvi saltar aqui,
para lembrar aquele tempo...
Se lhe viesse à cabeça uma palavra ao menos daquele tempo. Em
vez disso se despediu:
— Então, adeus, Helga. Prazer em vê-la.
— Adeus, tenente — disse ela, tentando sorrir.
Naquela mesma tarde deixou Juiz de Fora num ônibus.
SOZINHO no apartamento. É noite. Debruçado à janela, ele olha a
rua.
Um bonde, dois automóveis. Conversa de notívagos na esquina, o
vigia
da construção. Um choro de criança, miado de gato, tosse de homem,
são ruídos esparsos, débeis sinais de vida que não iludirão a
morte,
nessa hora em que todos se esquecem e dormem. Uma noite
semelhante, no Hotel Elite... O que me impede de morrer? Um dia
fui
dizer uma coisa no bar e percebi que não tinha nada a dizer. Não
soube
escolher, fui escolhido. Pois agora agüenta a mão, rapaz! Não vai
chorar
mais não, que não adianta. A princípio chorava tanto que se
acostumara a encarar o pranto com certo bom humor: muito bem, está
chegando a hora, daqui a pouco começa a choradeira. Ou então: isto é
bom, principalmente antes do jantar — é duro sofrer assim, mas abre
o
apetite. Encarava-se ao espelho com simpatia, quando o sofrimento
fazia escorrer lágrimas de seus olhos: “Então, garotão, como vão
as
coisas? Tem cabimento um homem chorando dessa maneira? Não liga
não, é assim mesmo, mais tarde passa...”
Mas as lágrimas acabaram secando e ele se limitava a ficar
andando pela casa, sem ter o que fazer, com preguiça de
barbear-se,
vestir e sair. “Uma de menos”, dizia seu Marciano, enxugando o rosto
a
cada manhã. Mal se arriscava até a esquina para comprar cigarros,
comer qualquer coisa, e voltava logo para casa.
Um dia encontrou Neusa, a menina sua vizinha. Já não era
menina: tivera um namorado.
— Não quero que essa menina fique por aí, tomando intimidade
conosco.
A vida é assim mesmo, pensou, de novo sozinho, resolvido a
esquecê-la sem remorso. Nos desmentimos a cada passo, o velho
Germano afirmara. Mas não há verdade nenhuma nos nossos ombros
como uma cruz. Para que esperar? Ele havia triunfado, precipitando
o
seu destino.
E assim passavam os dias, não tinha sequer em que pensar.
Rebuscava pensamentos que antes o seduziam, acabava organizando
listas: listas dos livros que já lera, das coisas que mais o irritavam,
das
mulheres que já conhecera, de seus autores prediletos. Com estes
compôs um time de futebol para jogar com o time das mulheres.
— Assim eu acabo doido mesmo — reconhecia, de súbito sentindo
pena de si mesmo, já se vendo doido manso, internado num hospício.
Antonieta o visitaria? e recomeçava a chorar.
Agora não está chorando. Tem os olhos secos e busca outra
janela, a que dá para o fundo de outros apartamentos. A área entre
os
edifícios se abre com um poço. O que me impede de morrer? Inclina-se
e
olha para baixo. Se algum dia tiver de suicidar faço um estrago
louco...
Mas Jadir não pensava assim. Hoje ele também não pensava assim. Nada de
violências! o tresloucado gesto na noite do Hotel Elite, me conte
tudo sobre a morte da meretriz. Nada disso, a coisa tinha de ser
suave,
delicada, impressentida... Um tubo de luminal, Antonieta não
deixara
atrás de si, no armário do banheiro, um tubo de luminal ainda
fechado?
Por que diabo teria comprado aquilo? Foi ao banheiro, abriu o
armário
do banheiro. Para que ele se lembrasse de tomar, depois que ela se
fosse? Deitar, dormir e morrer. Escovaria os dentes? Daria corda
no
relógio? Apanhou o tubo, abriu-o, despejou os comprimidos na palma
da mão, brancos, puros, inofensivos. Vinte comprimidos, era o que
se
chamava uma dose cavalar. O tempo dos cavalos... De repente
tocaram
a campainha da entrada.
— A esta hora?
Por um momento pensou em Neusa — enfiou rapidamente os
comprimidos no tubo, guardou-o no bolso do pijama e foi abrir.
— Você?
Era Vítor. Entrou meio constrangido, sorrindo de lado, tentando
naturalidade:
— Estava passando aí por perto, resolvi te fazer uma visita.
Então, como vão as coisas?
Aqui por perto? Desde quando alguém do outro mundo passava
jamais aqui por perto? Assim de noite, sem mais nem menos, como
antigamente. Não há de ser para pedir que lhe dê um livro para a
sua
editora. Pois então sente-se aí, esteja à vontade, espere um
instante,
vou ali na máquina e escrevo um livro para você. Escrevo um
romance,
o meu romance. Esse bestalhão saberá que o tempo dos cavalos já
passou?
— Como vai a editora?
— Vai indo. Estamos pensando em fundar uma revista. Aliás, seu
nome foi lembrado...
Eduardo o olhava, tentando simular interesse. Nem ao menos
alguma coisa para beber, nada a oferecer-lhe para quebrar o
constrangimento da visita. Quem sabe você aceitaria tomar uns
comprimidos de luminal?— E Maria Elisa?
— Está bem. Tivemos mais um filho, sabia?
Alguma coisa ele queria dizer. O que quer que fosse, melhor que
dissesse logo. Ou não dissesse — ninguém tinha nada com sua vida.
— Soube que você está sozinho.
— Escuta, Vítor — começou, mas o visitante o interrompeu,
incisivo:
— Não pense que vim aqui te chatear as idéias, me meter na sua
vida. Apenas acontece o seguinte: toco neste assunto porque não
vejo
outro jeito de dizer o que eu quero dizer. Mas é só para dizer que o
que
eu quero dizer...
De repente se perdia em palavras e olhava Eduardo como a pedir
ajuda:
— Bem, é o seguinte: vim aqui para lhe dizer que sou seu amigo,
conte comigo para o que der e vier. Era isso. E está acabado, não se
fala
mais no assunto.
Eduardo o olhava, estupefato.
— Fica meio cretino eu dizer isso assim sem mais nem menos —
continuou ele — mas que hei de fazer? Venho pensando há vários
dias,
não vi outro jeito. Afinal, você era o meu melhor amigo...
— Também não exagere...
— Não é exagero — protestou o outro: — De toda aquela turma
você foi sempre o melhor e em quem eu mais confiei.
— Ora, deixe de bobagem.
— Estou falando sério.
— E hoje?
— Ainda confio — disse Vitor, com firmeza. — Você vai para a
frente, estou certo disso. E vai por caminhos estranhos. Ainda
mais
agora, que você não tem desculpa. Eu confio em você.
— Obrigado, Vítor — disse Eduardo, comovido.
— Então não se fala mais nisso — e ambos respiraram aliviados.
Depois começaram a rir, felizes:
— Você esteve viajando, não?— Por aí...
Eduardo agora se tomava de inesperada euforia, pôs-se a falar,
explicar, contar casos. Falou-lhe da viagem a Belo Horizonte, de
Mauro,
da nova geração, das intelecções. Vítor o ouvia, interessado, de vez
em
quando fazia um comentário:
— Que estamos vivendo o fim de uma época, não há dúvida. Por
que você não escreve o que está me dizendo?
— Já pensei nisso. Mas, e você? Como é mesmo, o plano dessa
revista?
Era um homem de meia-idade, Vítor — pensava, a observá-lo com
simpatia, enquanto ele falava. Um pai de família, um homem
respeitável, um pouco ingênuo, mas vivo, coerente, reto, convicto,
vivendo de acordo com suas idéias — como ele gostaria de ser, como
seu Marciano gostaria que ele fosse. O que acontecera para Vítor
mudar
tanto?
— Cheguei à conclusão de que aquela vida que nós levávamos
não servia, resolvi tomar outro rumo. Tem de ser de uma vez só: ou
vai
ou racha. Aos pouquinhos é que não adianta. Mas outro dia me
aconteceu uma coisa engraçada — e Vítor sorriu, desajeitado, sem
saber se contava ou não: — Você ainda é católico?
— Eu nunca lhe disse que era católico.
— Qual, vocês mineiros são todos católicos. Mas, eu dizia, o que
me aconteceu foi o seguinte: fui a um médico, porque estava
sentindo
umas dores esquisitas. Tirei radiografia do pulmão, fiquei de voltar
no
dia seguinte. No dia seguinte o médico me pega e me leva a um
canto:
seja homem, rapaz — essa coisa toda. Você está com câncer no pulmão.
— Não é possível!
— Ouve o resto: levei a radiografia a outro médico, que confirmou.
Fui para casa daquele jeito, você pode calcular — mas resolvi
esconder
de Maria Elisa a notícia. Quando cheguei não agüentei mais, me
tranquei no banheiro, tive uma crise de choro. Quando dei por mim
estava pedindo a Deus um milagre, fazendo uma promessa: se eu não
tivesse nada no pulmão, subiria de joelhos a escadaria da Penha. Me
lembrei disso porque é o que todo mundo promete...
E Vítor fez uma pausa, respirou fundo:
— Só mesmo um milagre, porque a radiografia não podia mentir.
Pois bem: no dia seguinte o médico me telefonou todo afobado,
dizendo
que a radiografia fora trocada, eu não tinha absolutamente nada no
pulmão.
Eduardo ficou calado, à espera.
— O que eu quero saber é o seguinte: houve milagre? Por favor,
não conte isso a ninguém, que acho o caso todo meio ridículo, mas
eu
teria de cumprir a promessa?
— Tem — e Eduardo, sem saber por que, se lembrou de Germano.
— Mas foi apenas um engano do médico...
— Você fez um pedido, não foi? O que você pediu? Que não
tivesse nada no pulmão. Pois está aí, você não tem nada no pulmão.
Com muito menos do que isso Graham Greene escreveria um romance.
Cumpra a sua promessa.
— Mas continuo a pensar que se foi engano...
— Você acredita em Deus?
— Não sei, Eduardo... Quando estou sozinho eu acredito. Nunca
tinha pensado nisso antes...
— Talvez o milagre tenha sido a sua esperança no milagre...
O rosto de Vítor era agora o de um menino:
— Se é assim eu subo a escada, não tem dúvida. Vou lá de
madrugada, quando não tiver ninguém... Agora é uma questão de
teimosia. Milagre ou não, a verdade é que se prometi eu cumpro.
— Não sei, tudo é milagre... Se você não viesse hoje aqui, por
exemplo, quem sabe?
Conversaram até as quatro horas da manhã. Despediram-se
alegres e cansados, prometendo-se mutuamente se encontrar sempre,
se visitar, voltar ao convívio antigo, feito agora em outros termos.
E
nunca mais se viram: uma semana depois, na noite de Natal, Vítor
foi
atropelado e morto quando um ônibus desgovernado subiu na calçada
e
o prensou contra a parede.Bem, e agora? — pensa Eduardo no bar. Chegou o
tempo de
beber sozinho, sentado junto ao balcão. Neste bar se encontrou
tantas
vezes com Gerlane — inclusive a última, em que brigaram por causa
do
Amorim. Agora vem quase todas as noites tomar uns uísques até que
o
sono o domine. Ter insônia não é nada engraçado, mas já não há
luminal em casa, jogou fora naquela noite. Eu confio em você.
Eduardo.
Exatamente como Rodrigo, anos antes no vestiário da piscina: você
tem
de vencer. Vencer o quê, agora? Vencer na vida? Morte, aí está a
tua
vitória. A morte é para os que confiam. Os que confiavam nele
acabavam morrendo. Mas todos acabam morrendo, mais dia, menos
dia. Vítor morreu para que ele vivesse. Na noite de Natal! Para
que
Cristo nascesse. Mas isso já era uma idéia sem sentido.
Chegou o tempo de beber sozinho. Depois chega o tempo de
andar, andar até não poder mais de cansaço: castigar o corpo.
Depois
chega o tempo de trabalhar, fazer alguma coisa, sentir-se vivendo
de
alguma maneira. Houve um que nesta última fase fundou uma cidade.
Sim, ele sabe, conheceu nos outros e nos livros todas essas
etapas.
Nunca pensou é que pudesse acontecer com ele, logo com ele! que se
julgava invulnerável. Por ora, beber apenas.
— Imagine um elefante — disse ele.
— Um elefante — disse o garçom.
— Imagine dois.
— Hum...
— Um, não: dois!
— Eu sei: dois.
— Imagine três. Dez. Vinte.
— Vinte elefantes — sorriu o garçom.
— Agora, imagine cem, duzentos, mil.
— Mil?
— Mil. Se você é capaz. De mil, cinqüenta mil, cem mil elefantes.
Você é capaz?
— ...
— Pois agora imagine um milhão. Um milhão de elefantes galopando, um
milhão! Já imaginou?
— Poeira, hein?
— Poeira, nada: elefantes! Um milhão. Um bilhão, chega?
— Um bilhão — o garçom repetiu.
— Novecentos bilhões. Novecentos e noventa e nove trilhões! de
elefantes. Não posso mais. Acho que chega, você que acha?
— É muito elefante — concordou o garçom.
— É: muito. Pois agora você imagine uma pulga.
— Uma pulga — e o garçom suspirou, resignado.
— Isso: novecentos e noventa e nove trilhões de elefantes, de um
lado: e uma pulga, do outro lado. — Morou?
— Não.
— É o terror — arrematou ele. — Me dá um uísque.
Havia também a história do homem que procurava o seixo que
virava qualquer metal em ouro. Era uma vez um homem que procurava
um seixo que virava qualquer metal em ouro. Saiu por aí — foi na
Índia
— saiu ainda jovem pela Índia, todo seixo que via no chão
apanhava,
batia na fivela de metal do cinto e atirava fora. Andou por todas
as
estradas da Índia catando seixos, colheu pedrinhas no fundo dos rios,
e
nada. Um dia, depois de anos e anos de procura, já velho e
alquebrado,
sentou-se à sombra de uma árvore para descansar e distraidamente
olhou para a fivela do cinto — a fivela do cinto, que era de um
metal
qualquer, tinha virado ouro. Onde? Quando? Quer dizer que o seixo
procurado estivera nas suas mãos! Resignado, o velho recomeçou a
procura.
— Angústia, e da boa.
O médico dissera isso, depois de Ouro Preto. E finalmente, tinha
um sonho assim: alguém o obrigava a apanhar no fundo do mar uma
agulha — mas não sabia dizer precisamente onde: se no Oceano
Atlântico, se no Oceano Pacífico. E ele saía mergulhando, durante
anos
e anos, nada de agulha. Então lhe diziam: talvez se você tentasse
no
Oceano Indico... Em geral acordava em pânico, suado, chorando.
Completamente bêbado, o corpo oscilando sobre as pernas, deteve-se no
meio da sala, o copo na mão.
— Tenho de ir à missa.
Olhou em torno com olhos frouxos, tentando ordenar as idéias:
— À missa — repetiu.
Ninguém lhe deu atenção. Eram três horas da manhã e a festa ia
no auge. Havia de tudo: mulheres vestidas a rigor, moças de calça
comprida, rapazes de smoking, outros sem paletó. Um gaiato chegara
mesmo a comparecer fantasiado: era uma festa de passagem do ano, e
o
ano já passara sem que Eduardo percebesse.
— Tenho de ir à missa — exclamou pela terceira vez. Alguém a
seu lado deu uma gargalhada:
— Ele disse que tem de ir à missa!
Voltou-se lentamente e contemplou com olhar crítico a mulher
que tinha junto de si:
— Está rindo aí, sua boba? Vou-me embora, não tenho nada com
esta festa.
— Não está me reconhecendo?
— Nunca tive o prazer — e estendeu o braço para cumprimentá-
la. Perdeu o equilíbrio, teve de apoiar-se nela para não cair.
Aproveitou
o movimento e abraçou-a.
— Espera, espera! Está me molhando com esse copo. O que você
está bebendo?
— Uísque.
— Onde arranjou? Aqui só tem batida...
— No bar. Eu estava lá muito sossegado tomando o meu uísque,
apareceu não sei quem, me trouxe para cá, disse que era um absurdo
eu passar o ano sozinho, me arrastou para esta festa. Não quero
saber
de festa, preciso ir à missa.
— Mas por que missa? — a mulher se preparava para rir, na
expectativa.
— Você é meio burra, não é? Por que missa...
— É uma idéia — concordou ela: — Começar o ano indo à missa.
Começar o ano? Lembranças indistintas afloravam em confusão na sua
cabeça, uma festa na casa de Vítor se misturando àquela em
que estava agora, uma igreja iluminada, a primeira missa do ano,
há
quantos séculos? oh, como ele então era inocente! Deus rejeita os
inocentes: não servem para nada. É preciso se perder primeiro,
para
depois se salvar. Antes, resistir bastante, para que a queda seja
completa. Escarrapachar-se no chão, quebrar a cabeça. Pôs-se a
rir:
este era o privilégio do homem. Um direito, o direito de escolher.
Um
direito, ouviu? Deu um tapa nas costas da mulher.
— Ite, Missa est — despachou-a. Ela se ofendeu:
— Não faça isso. Você me machucou.
— Desculpe. Quem é você? Que diabo de festa é esta?
Todos se movimentavam agora, não caberia mais ninguém na
sala. Ele foi empurrado de um lado para outro, procurava proteger
o
copo já vazio.
— Estou bebendo desde cinco horas da tarde,
— Está se vendo — disse a mulher.
— Pois então vamos beber alguma coisa.
A custo atingiram a mesa a um canto. Eduardo encheu seu copo
de batida, que tomou de uma só vez. Fez uma careta de nojo,
voltou-se
para ela:
— Por que só servem cachaça, nesta casa? De quem é esta casa?
— Minha — respondeu ela, sorrindo. Ele não se alterou:
— Por que não disse logo? Então me dá um abraço.
Largou o copo na mesa e abraçou-a, cambaleando. Ainda a
segurá-la, olhou-a nos olhos:
— É uma pena você não poder sair comigo. É tão bonita, tão
simpática... Como é o seu nome?
Ela riu novamente:
— Você não está se lembrando de mim: Antonieta...
Ah! Aquela mulher era amiga de Antonieta: seu nome era Maria
Lúcia e no seu casamento lhe haviam dado de presente um quadro de
Joubert.
— Foi Joubert quem te trouxe — confirmou ela.— Não tenho mais nada com
Antonieta.
— Eu soube.
— Para mim ela morreu.
— Bebendo desse jeito, quem acaba morrendo é você.
— Sabe de uma coisa? Eu podia continuar bebendo assim até
morrer, mas não posso, porque daqui a pouco...
— ...tem de ir à missa.
Ele a olhou, espantado:
— Como é que você sabe?
Alguém veio chamar a dona da casa, Eduardo aproveitou-se e foi
saindo. No jardim pôs-se calmamente a urinar sobre as plantas, sem
se
importar com os casais que deixavam a casa para refugiar-se entre
as
sombras. Joubert bateu-lhe nas costas:
— Vamos embora, isso aqui não dá mais nada. Vamos a Lili.
— Todos a Lili — secundou o jovem que o acompanhava.
— Quem é Lili?
— Vem conosco, você vai ver só.
— Todos a Lili — repetiu ele para si mesmo, abotoando a calça,
No carro, deixou-se cair no banco de trás, estirando o corpo.
— Deixa ele dormir — disse Joubert. — Deve ter bebido demais.
— É. Está num porre desgraçado.
Eduardo endireitou-se e pôs a mão na maçaneta:
— Porre é a mãe. Pára o carro.
Os dois se espantaram, voltando-se para vê-lo. O carro diminuiu
a marcha:
— Que é isso, Eduardo? Você se ofendeu à toa, ele só falou...
— Falou é a mãe. Quem é esse menino para dizer que eu estou de
porre? Pára o carro.
— Mas não vamos a Lili?
— Sei lá que Lili! Estou quieto no meu canto e vem esse merdaseca dizer
que eu estou de porre. Pára o carro, que eu tenho de ir à
missa.
Os dois riram:— Ainda é cedo para a missa...
— Vamos em frente. Todos a Lili.
— Eu te mostro Lili. Pára essa joça!
Desta vez ele gritara com raiva — o jovem se assustou e parou o
carro. Os dois mantinham agora um silêncio ressentido, enquanto
ele
abria a porta e saltava. Fez uma pirueta inesperada, buscando se
equilibrar, despediu-se:
— Eu vou para a missa. Vocês vão para a...
O carro arrancou, as últimas palavras do xingamento morreram
no ar.
— Lili — resmungou, enojado. Danem-se.
Olhou o relógio e coçou a cabeça, irresoluto: o diabo é que eles
tinham razão, ainda era mesmo cedo para a missa. Foi caminhando
pela praia e insensivelmente tomou o rumo do bar, o mesmo bar de
onde Joubert o arrancara. Fez dois quarteirões num passo irregular
e
obstinado: a sede o consumia. Da esquina surgiu uma mulher, que o
chamou sem cerimônia:
— Psiu!
Deteve-se, ela veio se aproximando:
— Sozinho, meu bem?
— Não — respondeu, lembrando-se subitamente de Mauro e
começou a rir, apontou para cima: — Com ele.
— Com quem?
— Com Deus.
A mulher recuou um passo:
— Você está bêbado:
— É a mãe. Até logo, estou com pressa.
Enquanto caminhava, sentia os olhos se encherem de lágrimas.
“Devo estar mesmo bêbado”, pensou, percebendo que era ridículo e
sem
nexo chorar na rua àquela hora. Mas a verdade é que estava mesmo
sozinho. Procurou discernir as luzes do bar. Já não havia luz, o bar
se
fechara. Ficou revoltado: era uma traição! Fora vítima de uma
cilada.
Ou, quem sabe? ainda havia alguém lá dentro. Pôs-se a sacudir a porta
com violência:
— Abre isso aí!
Não havia ninguém, tudo às escuras. Enraivecido, apanhou uma
pedra junto ao meio-fio e atirou-a contra os vidros da porta, que
se
partiram, retinindo. Depois ficou por ali, resmungando. Dentro em
pouco, alertada por um dos moradores do edifício, que ouvira o
ruído,
chegou a radiopatrulha e o prendeu.
ERAM mais de sete horas da manhã quando conseguiu livrar-se da
delegacia. Saiu a correr pela rua, entrou num táxi:
— Depressa! Para a cidade.
Agora sentia os pensamentos mais ordenados, as idéias mais
claras: ela própria lhe telefonara, pedindo que não deixasse de ir.
Já
não fora ao enterro...
— Ele falou tanto em você nos últimos dias... Íamos te convidar
para a ceia de Natal, naquela noite.
Morto há uma semana. Não tivera coragem de ir vê-lo morto, e
agora ia perder a missa do sétimo dia.
— Sei que você não acredita nessas coisas, mas...
— Eu? Não acredito?
O motorista virou-se para trás:
— Como?
— Nada não. Mais depressa, por favor.
O efeito da bebida não passara de todo. Era aquela cachaça,
bebera um copo de cachaça com limão, onde? na casa daquela mulher,
conhecida de Antonieta. Para mim ela morreu.
— Depressa, por favor, é importantíssimo — pediu novamente,
sentado na ponta do banco. Só então, ao ver-se refletido no espelho
do
carro, deu conta do estado deplorável em que se achava: roupa em
desalinho, camisa encardida de poeira e suor, barba crescida...
Passou
o pente nos cabelos, endireitou a gravata, tentou recompor-se como
podia. Não tinha importância. Maria Elisa devia estar muito abalada para
prestar atenção nessas coisas.
Entrou na igreja precipitadamente, e estacou: a missa ia em meio,
o sacerdote erguia lentamente a hóstia. Tudo imóvel e em silêncio,
um
mar de cabeças curvadas e submissas. Agora as sinetas retiniam, as
cabeças se agitaram, todos se ergueram. Lá na frente, num grupo
isolado, pôde distinguir Maria Elisa, de preto, véu negro sobre os
cabelos louros. De súbito ela voltou a cabeça e seus olhos claros
o
descobriram, fixaram-se nos dele um instante.
Não teve coragem de se dirigir à Sacristia, finda a missa. Deixouse
ficar, irresoluto, à margem da multidão que saía, acabou saindo
também. Viera à igreja, eis o que importava. Fora visto por ela,
deixaria
para visitá-la um dia desses. Deu consigo caminhando até a
esquina,
ficou à espera do bonde.
— Você por aqui?
Era Térsio que também acabava de sair da igreja.
— Como foi acontecer uma coisa dessas. Tenho pena é de Maria
Elisa.
— Você está sumido — disse Eduardo apenas.
— Você é que está... Não te vi no enterro.
— Não gosto de enterros.
— Estive viajando, a serviço do jornal — e Térsio olhando para os
lados, para evitar o constrangimento do amigo, constrangido ele
próprio: — Agora vou ao Sul para ver se consigo uma entrevista com
o
homem. É a minha grande chance. Idéia do Amorim. Fundou um jornal,
você sabia? Estou trabalhando com ele.
— Não me dou mais com Amorim.
— É, eu soube... Vocês tiveram uma briga, não foi? Bobagem sua,
Amorim é um bom sujeito.
— Não interessa, Térsio.
O outro o encarou, finalmente, em desafio:
— E você?
— Eu o quê?
— Continua... Continua morando lá?— Continuo.
— Qualquer dia desses apareço. Se eu conseguir a entrevista...
— Você se lembra das 48 horas?
Não, Térsio não se lembrava.
— O seu primeiro tópico, contra o ditador...
— As coisas mudaram muito desde então, Eduardo.
— Vítor queria que todos nós escrevêssemos.
— É isso mesmo... Que coisa tremenda, o Vítor. Assim de repente.
E Térsio sacudiu a cabeça, depois se despediu.
Outro amigo morto — pensou Eduardo, e fez sinal para bonde que
se aproximava.
DA REPARTIÇÃO O advertiram que dali por diante teria de cumprir
horário,
assinar o ponto: determinações do novo prefeito.
— Chegou a fase do trabalho — reconheceu ele.
E passou a comparecer pontualmente, desdobrava-se em
eficiência, informava processos, aprendia enfim a trabalhar.
— Também não exagere — queixava-se o chefe, jovialmente,
tropeçando com ele a todo momento. — Você assim acaba criando
problemas para mim.
— Sou pago para trabalhar. Por isso é que este país não vai para
a frente. O que é que eu faço agora?
Diante de si um homem baixo, dentes escuros, fisionomia
vagamente familiar:
— Estou vendo que você não se lembra de mim.
— Confesso que não.
Mas se não era o Afonso! — fantasma de um período negro na sua
infância. Afonso era menino distinto, dizia a mãe. Debaixo da escada —
Afonso já usava calça comprida.
— E o que é que você deseja?
— Soube que você hoje é importante. Minha situação. Qualquer
coisa. Com boa vontade. Seu sogro.— Vamos ver o que se pode arranjar.
Sentiu pena do homem. Um dos funcionários chegara a
sussurrar-lhe: “Conheço a pinta: facadista — e pederasta”. A que
ponto
descera! Deu-lhe algum dinheiro e Afonso se eclipsou,
sorrateiramente
como surgira, para o seu mundo sombrio. Fosse algum tempo antes e
lhe teria dado um bom murro na cara.
— Já não sou mais um menino — sorriu para si mesmo, com
simpatia.
Naquela noite foi visitar Maria Elisa.
— Pensei que você não viesse mais — disse ela.
— Maria Elisa, eu... Eu senti tanto, foi horrível.
A todo momento ela se erguia, para cuidar dos filhos — três
crianças rebeldes que não queriam ficar na cama. Uma mulher jovem
e
bela ainda, largada no mundo com três filhos, sem ter mais com
quem
repartir o encargo — era a fêmea sozinha protegendo as crias:
— Mamãe se ofereceu para me ajudar a cuidar deles, mas eu não
quero, são meus.
— Vai ser difícil para você, Maria Elisa. Viver sozinha...
— Você não está sozinho?
— Bem, eu não tenho filhos.
— Pior ainda.
— Sou homem, é diferente.
Prometeu tornar a procurá-la e ela se despediu dele, o rosto
pasmado mas os olhos enxutos. Ele é que sentia vontade de chorar.
Resolveu procurar Antonieta:
— Fui visitar Maria Elisa — contou-lhe. — Nunca pensei que ela
fosse tão corajosa. Não se deixou abater. Depois de um choque
daqueles...
— Eu imagino... Li no jornal. Coitado do Vítor.
— Eles viviam tão felizes, ultimamente.
— Eu imagino — repetiu ela.
— O que teria acontecido conosco? — ele perguntou, abstraído.
— Conosco?— Eu não morri, nem você. E estamos sozinhos. Podíamos
ter
sido felizes...
Ela também ficou absorta, olhando fixo para frente:
— Não sei... Temperamento, Eduardo. Se você fosse diferente,
menos torturado, com mais vontade de vencer...
Ele pôs-se a rir:
— Mais vontade de vencer, eu? O que você chama de vencer?
— Vencer na vida: fazer carreira, ganhar dinheiro, levar uma vida
confortável.
— Para mim, o ideal de conforto é uma camisa limpa para mudar
todos os dias. E isso, pelo menos, honra lhe seja feita: no que
dependia
de você, eu quase sempre tinha.
— E hoje não tem?
Ele sorriu:
— Hoje, depende da lavadeira.
Ficaram em silêncio, pensativos.
— Você sabe que eu sempre tentei vencer escrevendo —
recomeçou ele, sem queixa.
— Ninguém lia — ela comentou, quase para si mesma.
— É verdade: ninguém lia. Nem por isso... e ele se ergueu para
partir: — O advogado me pediu para lhe avisar que os papéis já
deram
entrada, estão em andamento. Vai haver uma audiência.
— É muito complicado? — ela o acompanhou até a porta.
— Não. Basta o juiz dar a sentença.
Encontrou-se com ela ainda uma vez, a última. Foi um encontro
formal, sem uma palavra a mais, diante do pai, depois o advogado,
depois o juiz.
— Sinto muito, meu rapaz, é isso mesmo, se eu pudesse, mas
enfim — disse-lhe o sogro, se despedindo dele para sempre.
Tudo ficou resolvido: não havia problemas.
— Não há problema — foi mesmo a última coisa que disse para
aquela que era a sua mulher.
Não tinha dúvida, humanizava-se: algum tempo antes as coisas eram
piores, ele era pior. Algum tempo antes sofria, sim, mas sofria
mal, atropeladamente, o próprio tempo aos poucos ia-lhe ensinando
a
sofrer melhor, E a incapacidade de amar? Hugo lhe dissera um dia:
incapacidade de amar — orgulho — solidão — renúncia. Pois bem, eis
a
renúncia, eis a solidão. Onde o orgulho? Sua estrela de orgulho se
apagava, ninguém queria ver, ninguém via. O amor concebido em
termos de dádiva, em aceitação e entrega genéricas, não com relação
a
uma pessoa apenas, mas a várias, a muitas, ao maior número
possível,
até que muitas pudessem ser tidas como todas — a maioria. O amor
como regra, não como exceção. Elevado à perfeição, tudo e todos,
seria
talvez o amor de Cristo pela humanidade, quando disse que seus
irmãos eram aqueles que o ouviam. Que O ouviam.
Sentindo-se um nada, pequeno, ínfimo, ridículo, indo para casa
passo a passo, heroicamente, para enfrentar a noite da solidão.
Sua
grandeza, ainda não revelada.
Os homens — não era difícil amá-los — a todos, indistintamente
— olhando ao seu redor e se deixando viver. Ele duro, ele cheio de
arestas, defendido, cortante, hostil, se enojara de viver porque viver
era
fácil. Era só ainda ser e já ter sido. Pois bem — e agora? Agora via
em
volta que o seu mundo era dos outros também, carregando cada qual
a
sua cruz — pobres criaturas de Deus. E como eram simpáticas, essas
criaturas. Nada da sordidez que via antes em cada olhar, da miséria
em
cada gesto, o cotidiano sem mistério, a surpresa adivinhada em
cada
corpo, o segredo assassinado em cada boca.
— “Não és bom nem és mau: és triste e humano” — citou ele.
— De quem é isso? — perguntou frei Domingos.
— De Bilac.
— Pois não parece — disse o monge.
Veja o exemplo de frei Domingos — nem bom nem mau, apenas
um monge. Em Belo Horizonte se chamava Eugênio Maldonado, seu
colega de ginásio, dos mais humildes, mais recatados, mais
esquivos...
E, agora, era frei Domingos, vivia num convento. Mandara um recado
a
Eduardo, que o fosse procurar. “Mais um” — pensava ele: “mais um para se
meter na minha vida — e desta vez um padre”. Mas frei
Domingos tinha outro assunto á tratar:
— Estamos com um caso na Prefeitura, questão de impostos...
Soube que você trabalha lá, me encarregaram de lhe pedir esse favor.
Prometeu atendê-lo. Depois ficaram a conversar, Eduardo faloulhe em
Vítor, contou o caso da radiografia, da promessa que ele talvez
não tivesse chegado a cumprir:
— Foi milagre?
— Não — respondeu prontamente o monge: — Não houve neste
caso o que caracteriza o milagre, isto é, um elemento de
sobrenatural,
um fenômeno acima da razão.
Chamá-lo de você ou senhor? Eugênio ou frei Domingos?
— Bem, eu saí do ginásio, você se lembra. Depois disso... Até que
um dia...
De vez em quando, cansado da agitação da cidade, subia ao
convento para vê-lo, conversar um pouco.
— Milagre, sim — insistia. — O que ele pediu foi que não tivesse
nada. Contra a evidência, a radiografia era insofismável. E foi
atendido:
realmente não tinha nada, devia cumprir a promessa.
O monge sorria jovem, benevolente:
— Bem, não digo que ele não cumprisse a promessa... Mas é
difícil, você sabia? Sei de muitos casos — a escada não é
brincadeira,
subir de joelhos. São 365 degraus.
— Ele já morreu.
— Você me disse. Reze por ele... E pelo outro.
— Que outro?
— O outro, o da radiografia. A radiografia evidentemente era de
alguém...
Ora, eis que esse monge tem umas idéias que eu não teria —
pensou. Nunca me ocorreria rezar pelo outro. E dizer que eu poderia
ser
assim, como ele. Cabeça raspada, ali dentro como ele e não aqui fora
na
rua, sem saber ao certo onde ir.
Foi visitar Maria Elisa. Dera agora para procurá-la de vez em quando. A
caminho de casa passava por lá, de tarde, às vezes levava
uma bala ou uma lembrança para as crianças:
— Eles estão crescidos, Maria Elisa.
Esquecido de si mesmo, ficava a olhá-la com simpatia, vendo-a às
voltas com os meninos, ou reclinada sobre a mesa, uma mecha de
cabelos louros caída na face, tomando a lição do mais velho, com
um
suspiro de cansaço. Um dia ela se ergueu, endireitou no corpo o
vestido
leve de luto já aliviado, caminhou resoluta até ele:
— Eduardo, preciso falar com você.
Tomou-o pelo braço, levou-o à janela, longe dos olhos das
crianças.
— Vou ter de lhe pedir que não venha mais aqui.
Ele ficou a olhá-la, perplexo.
— Espere que eu lhe explico — sorriu ela. — Não precisa se
assustar: não é nada contra você, não. É que os vizinhos andam
comentando e, você compreende, na minha situação...
— Eu compreendo.
— Não me leve a mal, por favor. É tão difícil para mim. Não tem
nada demais.
a simpatia com que foi recebido neutralizaram sua agressiva
disposição
de escrever fosse o que fosse.
— Reportagem? Mas como você anda fora do mundo! Já não
tenho mais nada com isso, meu filho, Deus me livre de política.
Desde
que deixei o ministério não me meti mais. Aceitei ser ministro
apenas
para servir à minha pátria. E servir ao presidente, meu amigo
pessoal.
nada de mais, eu sei, mas essas coisas, quando começam a falar...
Espero que você compreenda.
— Eu compreendo, já disse.
— Se ao menos você não viesse sozinho...
— Com quem você queria que eu viesse?
Entardecia. Ele não a escutava mais e seu olhar se perdia para os
lados do morro, onde o sol começava a se esconder. Um avião
brilhava
alto, longe, no céu dourado. Cigarras cantavam numa árvore
próxima.
Da rua principal, na esquina, vinha o ruído áspero e tumultuado do
tráfego. Dentro do peite o coração batia rudemente.
— Eduardo...
Voltou-se para olhá-la, e viu-a pela primeira vez.
O último raio de sol iluminava-lhe o rosto e ao redor da cabeça os
cabelos se esfarinhavam numa auréola dourada. Os olhos,
claríssimos,
quedaram-se nos dele, imóveis, e os lábios, detidos em meio a uma
palavra, eram vermelhos e intumescidos, como se fossem destacar-se do
rosto.
— Não, Eduardo — ela teve tempo de murmurar, antes que ele a
beijasse. Depois se deixaram ficar um instante de olhos fechados,
as
cabeças unidas. Logo um ruído qualquer das crianças os chamou à
realidade.
— Nós somos amigos — ela advertiu apenas, emocionada.
— Eu sei...
Viu que ela se afastava — o corpo assim de costas num
movimento elástico e harmonioso — para abrir-lhe a porta.
— Adeus, Maria Elisa.
Saiu dali, a cabeça num tumulto. A mão pesada de Vítor parecia
descansar no seu ombro, amistosa, e ele horrorizado imaginava o
corpo
enorme apodrecido debaixo da terra.
— Não, não — balbuciava, andando pela rua.
Frei Domingos a princípio não entendeu bem:
— Se ela lhe pediu que não voltasse lá e você mesmo acha que
não deve voltar...
— Não é isso — insistia ele: — É que eu senti desejo por ela e não
podia, não tinha esse direito.
— Por causa dele?
— Não sei. Por causa dele, talvez. Por causa dela, das crianças.
O monge o olhou, inquiridor:
— Olha, Eduardo, vou lhe perguntar uma coisa...
— Não me pergunte se acredito em Deus que é uma pergunta
meio irritante.
— E no demônio, você acredita?
— O demônio eu sei que existe.
Frei Domingos riu, depois continuou:
— Mas não era isso que eu ia perguntar. E pergunto porque é
preciso para que eu possa entender: se você... vivendo sozinho...
bem,
como é que tem se arranjado nesse setor.
— Não vai querer que me confesse, vai? — brincou ele.— Seria bom —
respondeu o padre, sério.
— De vez em quando levo alguma mulher lá em casa, mas nem
sempre, em geral depois tenho nojo.
— Eu calculava.
— Um dia levei uma moça que mora perto de minha casa.
Quando ela era mais nova vivia me provocando, eu resistia por causa
de
minha mulher. Mas agora me disse que foi enganada pelo namorado —
a história de sempre. Com ela não tive nojo. Foi uma espécie de
triunfo...
— Triunfo do demônio — acrescentou o padre.
— Mas isso não chega a constituir problema para mim. Para dizer
a verdade, eu não me importaria de ser casto, se fosse possível.
O monge tornou a sorrir, e ficou silencioso.
— Tudo isso não tem nada a ver com o que senti por Maria Elisa.
Foi diferente. Eu tive desejo mesmo, de todo o coração. Não
sentiria
nojo depois. Senti nojo antes, nojo de mim mesmo, tive uma espécie
de
remorso antecipado pelo que poderia vir a acontecer. Não é
possível,
Frei Domingos, é sórdido demais. Se eu continuar assim, eu estou
perdido.
O monge tocou-lhe o ombro, se despedindo:
— Pelo contrário — falou com firmeza: — Se você continuar
assim, você está salvo.
A CAMINHO da repartição, comprando na banca o jornal do Amorim. Na
terceira página a notícia numa coluna social: nomeado embaixador,
levaria para a Europa a filha, recentemente desquitada.
— Eles sempre se arranjam — murmurou, pensando no sogro: —
São assim mesmo: não querem nada, só sacrifícios, servir a pátria,
e
tal, e coisa, mas eles sempre se arranjam.
Dobrou o jornal e guardou-o no bolso. Procurava obstinadamente
não pensar em Antonieta.
Qualquer coisa no ar, entre os colegas de serviço. Olhavam-no de maneira
diferente, calavam-se quando ele se aproximava. A certa altura
resolveu interpelar o chefe.
— Bem — fez o homem, constrangido: — Cada um tem seus
problemas, cada um é dono de sua vida. Resolvi proibir que aqui
dentro
se falasse no assunto, para deixá-lo mais a vontade.
Afastou-se, irritado. Tudo isso por causa de uma simples notícia
de desquite? Não disse mais nada a ninguém, foi ao toalete. Misael,
um
funcionário meio calvo, casado e cheio de filhos, também ia urinar.
— Olha, Eduardo: ele não quer que se fale nisso, mas eu falo.
Para mim você continua o mesmo. Não acredito em nada daquilo, sei
que você é inocente, deve ser alguma confusão. Gostaria só que você
me
contasse se...
— Sobre o que você está falando? Explique-se logo, homem de
Deus — retrucou ele, impaciente.
O outro puxou-lhe o jornal do bolso, exibiu a última página:
— Será possível que você ainda não leu?
“Crimes para sempre insolúveis”, de uma série de reportagens: o
crime do Hotel Elite. Leu atropeladamente, ali mesmo, as três
colunas
historiando a morte misteriosa da bela desconhecida. O jovem
Eduardo
Marciano, recém-chegado ao Rio, que viera fazer? Procurar uma
mulher
— disse a várias pessoas. Forçou entrada no Cassino Atlântico com
uma grande gorjeta — depoimento do porteiro no inquérito. Visto
entrando com sua vítima no hotel. As contradições do jovem: dizia
nunca tê-la visto em sua vida, deixou apressadamente o hotel para
Belo
Horizonte, passou-se para outro hotel, como se acabasse de chegar
de
Belo Horizonte... Feita a exumação, constatou-se que a mulher
havia
sido Seviciada antes da queda. Seu companheiro estava nu quando
comunicou ao porteiro o “acidente”. A interferência oportuna do
sogro,
então ministro, fêz arquivar o processo — mais um crime sem punição.
O delegado recebeu-o a sorrir:
— Este mundo dá muitas voltas, hein, rapaz?
Custou a reconhecê-lo: havia raspado a barba.
— Como é que você veio parar aqui? — perguntou.— Está espantado?
Consegui minha transferência, afinal foi mais
fácil do que parecia. Você se lembra, não? Não, você não se lembra.
E
vim servir aqui, na própria Chefia.
— O que significa isso? — e Eduardo exibiu-lhe o jornal.
— Mandei chamá-lo exatamente por causa disso. Me lembro que
na época seu depoimento foi colhido por mim mesmo, por
precatória...
Que coincidência, você não acha? O chefe está muito interessado em
dar solução a esses casos, fazendo revisão de processos, etc.. A
imprensa, você sabe, não perdoa nada... No seu caso, a coisa é
simples.
É só provar...
— Imprensa nada — retrucou Eduardo, enraivecido: — Imprensa
aqui é o Amorim, que você conhece muito bem. Você deixou que ele
fizesse isso comigo, até ajudou. Pensei que você fosse meu amigo,
Barbusse.
— Que é isso, rapaz? Fale baixo, até aqui você quer me
desmoralizar? Não deixei coisa nenhuma. Apenas não podia
impedir...
Pois se é ordem do próprio chefe! Mas no seu caso não se aflija,
não
creio que essa reportagem seja justificativa bastante para a
reabertura
do inquérito...
Deixou enojado a polícia, tornou a ler a reportagem que toda a
cidade estaria lendo. Seu nome estaria sob os olhos de todos como
suspeito de um crime, “o crime do Hotel Elite”... Antonieta estaria
lendo,
Maria Elisa, os conhecidos, os vizinhos. Não podia ficar assim, tinha
de
dar um desmentido.
— Acho imprudente — disse frei Domingos: — Muita gente que
não leu da primeira vez, lerá da segunda.
— É a minha honra que está em jogo.
— Ora, que bobagem... Isso não tem a menor importância. Tem
importância apenas a seus olhos.
— Acha então que não tem importância nenhuma passar por
assassino aos olhos de todo mundo?
E já descontrolado, quase chorando:
— Por que eles tinham de fazer uma coisa dessas comigo? E eu que já
começava a acreditar nos outros... Como a natureza humana
pode ser tão sórdida?
— Você está enganado. A natureza humana não é sórdida. Você
diz: e eu que começava a acreditar nos outros... A solução não é
acreditar nos outros, mas em Deus. E tudo mais vem por acréscimo.
— Não mete Deus nisso não, frei Domingos. A solução seria eu
sair daqui, ir lá no jornal e dar um tiro naquele filho-da-puta.
— A solução pode ser boa, mas a expressão é que é um pouco
forte para ser dita aqui..
— Perdoe.
— Você não vê sua própria contradição? Indignado porque te
chamaram de assassino, pensa logo em assassinar quem te calunia.
— O que eu poderia fazer de mais justo?
— Muita coisa — disse o monge, pensativo: — Essa pobre mulher
desgraçada, por exemplo, se atirando assim da janela, lembre-se
dela,
esqueça um pouco o seu problema...
— Ela não tem mais nenhum problema: já morreu há muito
tempo.
— Pois então? Reze por ela...
Já vinha de novo aquele monge descobrir ângulos inéditos nos
casos para depois mandá-lo rezar. Era verdade, nunca lhe passara
pela
cabeça o drama vivido pela suicida. Ela também amava, sofria,
buscava
a morte como solução. E tacitamente a considerava apenas uma
meretriz... Talvez fosse esse o seu crime, pelo qual estava pagando.
— Não sei... Eu não posso continuar vivendo assim, um dia terei
de escolher: aceitar tudo, ou fechar os olhos e me precipitar de
cabeça
no desconhecido...
— Aceitar o quê? O pecado?
— Não sei... Prefiro dizer o erro. O que me desagrada nessa
história de pecado é o aspecto de imposição, de ordem, porque a
sociedade exige...
— Não é nada disso: é outra espécie de ordem... É precioso não
pecar, mas docemente, suavemente, não por imposição: por amor. Se for
preciso, contra a sociedade. Por que você não vem passar uns dias
aqui conosco, para conversarmos mais longamente? Temos um quarto
de hóspedes...
Andando pelas ruas, sem ter aonde ir. Depois do jantar no
restaurante, não conseguira ir para casa. Aquilo não podia ficar
assim.
Difícil de engolir, o conselho do monge. Amorim havia de pagar pelo
que
fizera. Pelo menos pregar-lhe um susto, dar-lhe uns tapas para que
ele
aprendesse sua lição. Resolveu procurá-lo, passando pelo bar de
costume.
Não encontrou Amorim e deixou-se ficar, sozinho, tomando
uísque. Vontade de esquecer tudo e se distrair, conversar com
alguém...
Mas alguém que o aceitasse sem condições, que não fizesse
perguntas,
que não soubesse de nada. Procurava afugentar a lembrança do
monge:
pense nessa pobre mulher desgraçada, reze por ela. Outra espécie
de
ordem. Aceitar o pecado. Se de súbito a porta se abrisse e Gerlane
entrasse...
— Tenho mais o que fazer. Eduardo.
Todas tinham mais o que fazer. Maria Elisa com seus filhos, não
me leve a mal, vou lhe pedir que não venha mais aqui. Antonieta na
Europa: temperamento, Eduardo. Se você não fosse tão torturado...
Sim, era torturado! E daí? Ele também tinha mais o que fazer, não
precisava de ninguém. De vez em quando levo uma mulher lá em
casa...
Triunfo do demônio! Lembrou-se de Neusa: uma mulher como as outras
— dezoito anos, é o que interessa, dizia Térsio. Não era o primeiro
e
nem seria o último. Que lhe importava? Dirigiu-se resolutamente ao
telefone, discou para ela. A vida era assim mesmo.
— Estou esperando um filho seu — disse ela.
TUDO lhe parecia não passar de um equívoco já desfeito. Logo com
Neusa, a quem mal conhecia! Nem bonita nem atraente. Como as
outras — não parecia tão criança. Relembrara o encontro que tiveram:
— Quanto tempo, hein?— Você se lembra?
— Nós éramos loucos...
Ela perguntara se era verdade que ele havia se separado de
Antonieta.
— É o que dizem. Mas, e você, Neusa? Está tão diferente...
— Tanta coisa...
Depois ele a convidara para ir à sua casa:
— Conversar um pouco. Um instantinho só.
Ela contara a história do namorado, um oficial de marinha:
— Prometeu casar mas não acreditei. Não me arrependo...
O resto se passara no sofá, já nos braços um do outro, ela nem ao
menos tirara o vestido.
— Como foi acontecer uma coisa dessas.
Mas era o que todas diziam, não acontecera nada de
extraordinário. Agora estava grávida.
— Você tem certeza?
— Absoluta. Fiz os exames todos. O problema é minha mãe, se ela
descobrir estou perdida.
Morava sozinha com a mãe, a velha lhe vigiava os passos.
— O que é que ela pode fazer.
— Ora, Eduardo.
Estavam numa confeitaria — naquele lugar ele se encontrara uma
vez com Antonieta, séculos atrás, tomara um vermute. Depois tinham
ido ao cinema, beijaram-se pela primeira vez,
— Espera, vamos conversar com calma. Você tem mesmo
certeza...
— Já disse.
— Eu digo se você... se foi mesmo naquele dia? Ela se ergueu
vivamente:
— Eu sabia que você ia dizer isso. Já tinha resolvido a não lhe
contar nada, você jamais ficaria sabendo. Foi você quem me
telefonou,
quem insistiu em se encontrar comigo. Você pense o que quiser, eu
me
arranjo sozinha.— Se for questão de dinheiro...
— Não é questão de dinheiro. Adeus, Eduardo.
Ele a reteve pelo braço, quando ela já se dispunha a sair:
— Calma, menina! Me desculpe, estou meio confuso, mas
também não precisa se ofender! Sente-se aí. É que eu... Uma vez
só!
Não contava com essa.
— Muito menos eu.
Ele a olhou com curiosidade. Estava pálida e agora mais do que
nunca parecia uma mulher: os cabelos, o vestido, a bolsa, os sapatos
de
salto alto. Nada da menina de short que o excitava tanto, nas
ausências
de Antonieta. Meu Deus, pensou ele, essa mulher é uma perfeita
desconhecida para mim.
— O que eu queria saber...
Ela tornou a sentar-se. Ele não sabia o que queria saber. Chamou
o garçom.
— O que é que você quer tomar?
Esperando um filho seu. Mas um filho não constituía problema
hoje em dia, o essencial era não perder a cabeça.
— Vamos pensar com calma — repetiu. — Quanto tempo já tem?
— Isso que você está pensando eu não faço.
— Não estou pensando nada. Há de haver um jeito.
— Prefiro morrer.
— Não diga bobagem. Você não é a primeira.
Nem o primeiro nem o último. Por onde diabo andaria o tal oficial
de marinha?
— Você não pode fazer nada, pode?
— O quê?
— Você não pode fazer nada — ela repetiu, e se concentrou no
menu que o garçom trouxera, escolhendo um refresco. Ele a observava:
quem está esperando filho não pensa em refresco.
— O que você está pretendendo, Neusa?
— Nada.
— Eu sou casado, você sabe disso.— Desquitado.
— Dá na mesma. Se você...
Lembrou-se de Gerlane: já me disseram que você é um puritano.
— Não quero parecer puritano, mas para assumir essa
responsabilidade...
Ela estourou, afinal:
— Não quero que você assuma coisa nenhuma! Não sei que
estupidez a minha, vir a esse encontro. Chame o garçom, por favor,
eu
quero ir embora.
Ela nem chegara a tocar no refresco. Como eu posso ser tão
mesquinho, pensou ele, enquanto conferia o troco. Não lhe ocorria
dizer
nada, fazer nada. Despediu-se dela prometendo telefonar à noite.
— Não se aflija, tudo há de dar certo, de um jeito ou de outro.
Naturalmente você antes de tudo vai ter de consultar um médico...
Você
já consultou um médico?
Passou o resto do dia vazio e distraído, incapaz de qualquer idéia
consistente: o céu é azul, pensava; estou sem fome; hoje é terça,
amanhã é quarta.
À noite, porém, ela é que lhe telefonou:
— Olha, Eduardo, estive pensando no que você disse, cheguei à
conclusão de que você tem razão, não há outra coisa a fazer.
— Mas eu não disse nada! O que você está pensando em fazer?
— Pensando, não: já fiz. Fui ao médico hoje, marquei para
amanhã de manhã.
— Marcou o quê?
De súbito ele caiu em si:
— Você está louca? Que médico é esse? Marcou o quê?
— Você mesmo disse...
— Eu não disse coisa nenhuma! Você não pode fazer uma coisa
dessas!
A consciência do que estava acontecendo lhe veio como um
clarão: aquela mulher estava grávida, um filho seu. O seu filho,
seu
verdadeiro filho, morrera já, arrancado ao ventre da sua mulher como
semente mal nascida. Pior do que morrer é não ter nascido, ele dissera
um dia, quando ainda acreditava na vida e tinha uma missão a
cumprir
— a de dar seu testemunho. Testemunho de quê? Do pecado. Outra
espécie de ordem, dizia frei Domingos — que ordem era essa, cuja
transgressão se fazia necessária para que o homem se redimisse?
Essa
vida é mesmo sórdida, se repetia, aflito, sem saber onde buscar
forças
para resistir. Se era preciso errai primeiro, escorregar, cair, para
depois
entregar-se às mãos de Deus, matéria de salvação, aproveitasse! aí
estava a ocasião de queda: esse era o problema a enfrentar.
Estarrecido
como se não só a sua sorte, mas a do mundo inteiro dependesse
daquele passo. A salvação do mundo só poderia vir do Cristo... Era
como se o objetivo de sua vida fosse esse: tudo o que fizera até
então,
desde o nascimento, o trouxera por caminhos confusos até a última
prova, o teste definitivo da sua natureza de homem.
— A que médico você foi? — perguntou, para ganhar tempo.
— Uma amiga minha me indicou.
— Vocês são muito experientes hoje em dia, conhecem a vida, têm
solução para tudo... Sabe que isso é considerado um crime? Sabe
que
isso é um...
— Não seja ridículo, Eduardo — cortou ela.
— É uma coisa perigosa — ele evitava a palavra abjeta: — Você
não podia esperar um pouco?
— Esperar o quê? Quanto mais tarde, mais perigoso.
— Esperar que ele nasça. Dá-se um jeito — insistiu.
— Você é casado.
— Não tem importância. Eu reconheceria. Afinal de contas o filho
é meu, não é?
— E depois? Você se esquece de uma coisa, Eduardo: o filho é
seu, mas eu não sou.
— Não importa, Neusa: o filho seja de quem for...
Afastou-se do telefone em estado de pânico: sua sorte estava
lançada. Não dependia de mais ninguém senão dele: forças poderosas
se juntavam, um mecanismo gigantesco se punha em movimento para
triturá-lo, submetê-lo à grande tentação, até que se cumprisse o que
estava escrito. Esses eram os desígnios de Deus, reconhecia-os afinal:
o
sacrifício exigido. Mas o que pretendiam dele? se resistir era a
sua
decisão, último rasgo de fidelidade a tudo em que um dia
acreditara?
Onde a tentação, onde o sacrifício? Já não entendia mais nada, de
novo
indeciso, andando da sala para o quarto, do quarto para a sala.
Bastava
ir buscar Neusa em sua casa, sacudi-la pelos ombros, enfrentar sua
mãe, contar-lhe tudo, impedir aquela loucura. E depois? O filho
espúrio
largado no mundo para crescer, viver, enfrentar os mesmos
problemas,
cometer os mesmos erros, desperdiçar sua chance de salvação. Essa
a
nossa chance, a que todos têm direito — ele afirmara quando jovem.
Chance, mas de nascer para uma vida de misérias e ir morrendo
diariamente pelas ruas. Desgraçado o dia em que eu nasci, ele
pensava,
e a noite em que se disse: foi concebido um homem.
Pouco depois voltava ao telefone, chorando:
— Você tem razão, Neusa, não há outra coisa a fazer. Mas eu
quero ir com você...
Da sala ao quarto, do quarto ao banheiro, já pedindo a Deus um
milagre. A promessa de Vítor, também feita num banheiro, a
escadaria
da Penha de joelhos, a radiografia trocada, e se não houvesse
filho
algum? e se os exames se negassem, o médico se enganara, os
sintomas
se desfariam, e Deus perdoava, e não mais precisava imolar o
filho,
como no sacrifício de Abraão. O que era preciso para haver um
milagre?
E eis que o anjo do Senhor gritou do céu, dizendo: Abraão, Abraão.
E
ele respondeu: aqui estou.
— Meus Deus, eu não posso pagar esse preço, é demais para
mim.
(E o anjo disse-lhe: não estendas a mão sobre o menino e não lhe
faças mal algum.)
Debruçado à janela do quarto, via a noite envelhecer sobre a
cidade imensa onde homens e mulheres se esqueciam, e copulavam, e
dormiam. Nada mais existia sobre a terra — Deus, entediado do
mundo,
havia adormecido também. E o mundo não conheceria outros anjos, senão os
que germinavam no ventre e não chegavam a nascer. Em
verdade te digo: antes que o galo cante, eu te negarei três, dez,
vinte
vezes! Esse é o desígnio do homem, sozinho dentro da noite. E
dentro
da noite um galo cantou.
Às duas horas da manhã ele ainda estava à janela, como um
sonâmbulo, à espera de que alguma coisa acontecesse.
Às três horas ele disse: eu não posso fazer nada.
Às quatro horas sentiu sede, foi à cozinha e bebeu um copo
d‟água.
Às cinco horas adormeceu, sentado na poltrona.
— MARQUEI um encontro aqui com uma moça chamada Neusa...
— Ela está sendo atendida pelo médico.
Olhou com estranheza o homem de avental branco que o
recebera. Tinha um bigode fino, bem aparado, e era ainda um rapaz.
— Desculpe, pensei que o senhor fosse o médico.
— Ela é sua mulher?
— Bem... Eu...
— Vamos passar à outra sala?
Eram nove horas da manhã. Depois de esperá-la meia hora à
porta do edifício, como combinara, subira ao consultório, aflito,
temendo que ela já tivesse entrado. Passaram à outra sala e ele
mal
podia andar: as pernas se recusavam. O homem lhe pôs a mão no
ombro:
— O médico sou eu mesmo. O senhor não precisa ficar nervoso.
Correu tudo bem. Ela está repousando agora.
— Correu tudo bem? Mas eu vim aqui para...
— Não precisa gritar! Tem gente ali fora.
— Eu não queria que isso acontecesse — e ele se deixou cair
numa cadeira. — Eu não queria...
Vou sa �Ga a (.� 0� alquer coisa.
Milagre? Sim, parecia viver à espera de um milagre. Havia alguma
coisa de errado, sim, de fundamentalmente errado, sim. Se
descobrisse
o que era, estaria salvo.
Ao chegar, sem sono ainda, ia para o escritório. Ficava tentando
ler ou escrever, mas não lia nem escrevia nada. Mesmo seus artigos
semanais, cada vez menores, lhe saíam penosos, difíceis: as
idéias,
sopradas de alguma parte de sua mente, não chegavam a impressionar
a consciência, não se traduziam em palavras e permaneciam difusas,
feitas em estados de espírito. Depois ia dormir, despindo-se no
escuro
para não acordar a mulher. Às vezes fazia chá e o tomava na sala
com
todos os requintes, como num secreto ritual da solidão.
Por que ela o evitava? Era evidente que o evitava. Mesmo quando
ele só para experimentar a procurava, ela se conformava em
aceitá-lo
apenas como quem rende o corpo a um sacrifício necessário e
inevitável. E no princípio fora tão diferente — quando se sentiam
integrados um no outro, completados, perfeitos.
— É tarde por quê? — perguntou ele.
— O quê?— O filho.
— Ora... — e ela se afastou sem dizer mais nada.
Que significava o casamento para ela? — pensava então, irritado.
A gente se casa é para isso mesmo: ter filhos e tocar o barco para
a
frente. Constituir uma família. Quem não pensar assim que não se
case.
E ele próprio? Afinal, que fizera de seu casamento senão um
campo aberto às acomodações, e a todas as transigências,
ludibriando,
burlando a vigilância de Deus?
— Mas escuta aqui, Eduardo Marciano, você acredita mesmo em
Deus? — ele se interrogava ao espelho, fazendo caretas. Ou quem
sabe
acreditava apenas em certos preceitos, certas regras de conduta
que
não chegava sequer a praticar, certos ensinamentos recolhidos e
conservados como as roupas de alguém que já morreu?
Basta de interrogações. Sim, acreditava em Deus, mas um Deus
longínquo, esquecido, distraído, voltado para outras preocupações,
que
não o seu mesquinho problema de aprender a viver. Ou de não ter
problemas. Não pensar mais nisso, pois. Às vezes, quando Antonieta
já
estava dormindo, não resistia e tornava a sair. Ia a um bar
qualquer,
beber um pouco mais em companhia de algum conhecido da
madrugada até que o sono viesse. Conhecidos é que não faltavam. Havia os
antigos freqüentadores do bar, perdidos como ele pela noite à
procura de esquecimento ou convívio — quando não os encontrava,
fazia relações com o primeiro que aparecesse. Uma noite, já
bêbado,
seguiu com um desses até uma casa de mulheres, deitou-se com uma
delas. No dia seguinte nem se lembraria o que chegou a fazer com
ela,
mas no momento em que entrou novamente na intimidade de seu
quarto que cheirava a tranqüilidade e sono, o sono de sua mulher,
teve
vergonha de si mesmo, teve remorso, deixou-se cair de joelhos junto
à
cama, começou a chorar. Antonieta acordou sobressaltada .
— O que foi? Você está doente?
Espantou-se ao vê-lo assim todo vestido:
— Você vai sair? Por que está chorando?— Por causa de meu pai — soluçou
ele, sem erguer a cabeça. Ela
chegou a sorrir, passou a mão pelos seus cabelos:
— Seu pai já morreu há tanto tempo...
— Mas só agora eu estou sentindo. Ele era tão bom para mim,
Antonieta.
Em verdade, passara sem transição a chorar a morte do pai.
— Você saiu e andou bebendo. Está cheirando a uísque. Vem
dormir que já é tarde.
— Não! Vou ler um pouco.
Foi dormir no escritório, porque naquela noite não queria se
aproximar de Antonieta.
ABRIU a carta com sofreguidão pensando ser de Hugo ou Mauro,
lembranças de um tempo morto. Era do Veiga: “Queria uma reportagem
sobre o momento político. Coisa viva, movimentada, inteligente, como
só
você saberia fazer”.
— Vou fazer uma reportagem política. Talvez seu pai possa me
ajudar.
Tentava amparar-se num entusiasmo de ocasião: coisa viva,
movimentada, inteligente, só ele saberia fazer — Veiga tinha
razão.
Ficou um pouco desconfiado: por que ele teria se lembrado
justamente
de mim? Já não publicava mais nada — o jornal cortara seus artigos
semanais por falta de espaço. E desde estudante não escrevia sobre
política. O Amorim, por exemplo, seria muito mais indicado:
entendia
do assunto, também era mineiro, também trabalhara com o Veiga...
Não
lhe agradava a idéia de visitar o ex-ministro especialmente para
isso.
Era-lhe penoso enfrentar a roda de políticos que o cercava —
bajuladores, aproveitadores eventuais, trocavam de idéia e de
convicções como quem troca de camisa, segundo as conveniências do
momento. Ele, pelo menos, ainda acreditava numas tantas coisas.
— São uns vendidos — concluiu, no mesmo tom de Mauro,
antigamente.Desta vez, porém, iria procurá-lo como jornalista — afinal
de
contas, era um escritor, um profissional, a quem uma missão fora
confiada. Como só ele saberia fazer. Sabia outrora fazer artigos
desafiando a censura, atacando o governo, exigindo democracia.
Onde
ficara tudo aquilo? Ali talvez estivesse a oportunidade para
recomeçar
algo de útil, voltar a escrever, influindo, participando.
Movimentada,
inteligente. Quanto mais gente lá estivesse, melhor. Conversaria
com
um e outro, contaria tudo que ouvisse.
Não durou muito o entusiasmo: teve a surpresa de encontrar o
velho sozinho, sentado na varanda, e desde o primeiro instante o calor
e
a simpatia com que foi recebido neutralizaram sua agressiva
disposição
de escrever fosse o que fosse.
— Reportagem? Mas como você anda fora do mundo! Já não
tenho mais nada com isso, meu filho, Deus me livre de política.
Desde
que deixei o ministério não me meti mais. Aceitei ser ministro
apenas
para servir à minha pátria. E servir ao presidente, meu amigo
pessoal.
— Não há perigo nenhum — o médico procurava acalmá-lo. —
Correu tudo bem. Foi uma intervenção muito simples.Intervenção? Eduardo
o olhou com raiva: fora uma intervenção
muito simples e aquele homem de mãos delicadas como as de um
menino, jovem ainda, provavelmente recém-formado, assim ganhava a
vida, não tinha nada do carniceiro que se acostumara a imaginar, o
aborto era uma intervenção muito simples.
— É preciso coragem — disse apenas, num sussurro.
— Não tenho ilusões, meu amigo. Encaro a vida com realismo.
Isso acontece.
O avental lhe envolvia todo o corpo, branco, imaculado, sem
nenhuma mancha de sangue e ele, sentado de pernas cruzadas,
deixava
entrever parte da meia, com alguma coisa enfiada nela, era
dinheiro!
guardava dinheiro dentro da meia. O médico seguiu a direção de seu
olhar e sorriu, desconcertado, descruzando a perna:
— O senhor vê, essa roupa não tem bolsos, e é tanta coisa a fazer,
mal tenho tempo...
— O movimento deve ser grande. A sala ali fora está cheia...
— Sou um obstetra — defendeu-se o homem: — Minha profissão
é essa. A moça precisava de uma intervenção.
Dinheiro — a única prova do crime.
— Ela já lhe pagou?
O homem se ergueu:
— Já está tudo acertado. Ela está descansando com a enfermeira
aí dentro, vou ter de sair, mas se o senhor quiser esperar, daqui
a
pouco pode levá-la. Já disse a ela o que terá de fazer. Com dois dias
de
repouso estará inteiramente boa.
— Eu vou lhe pedir um favor — Eduardo disse então.
Ergueu-se também e os dois se olharam nos olhos. O médico
ficou calado, na defensiva.
— Quero que o senhor invente para ela uma história qualquer.
Dizer que não foi um aborto, compreende? que era um tumor, um...
qualquer coisa...
— O que o senhor pretende com isso?
— Quero que a responsabilidade seja toda minha.— Não estou entendendo.
Que responsabilidade? Não vai
acontecer mais nada, já lhe disse. Se ela seguir minhas
recomendações...
— A responsabilidade diante de Deus. Entende agora?
O médico o olhava, intrigado:
— Não entendo nada. Já lhe disse que a intervenção era
necessária. O embrião se descolara, estava morto, e se essa moça...
— Estava morto? Quer dizer que...
O médico esperou um pouco, mas como Eduardo não dissesse
mais nada, se despediu:
— Fique à vontade. Vocês podem sair por essa outra porta. Com
licença.
Plantado no meio da sala, Eduardo não fez o menor movimento.
Muito depois que o médico se foi, continuava na mesma posição,
olhos
fixos, braços caídos — estátua de dúvida, surpresa, aniquilamento.
Estava morto. Inútil seu sofrimento, como no desastre de Rodrigo,
o
afogado, ele também estava morto, antes de sair do avião. Caminhou
até a janela e olhou a rua. Um sol violento batia de chapa no
mosaico
da praça, faiscando nos automóveis que passavam, envolvendo a
cidade
numa festa de luz matinal. Então seu pedido fora atendido, como o
de
Vítor! restava a promessa de ambos, subir de joelhos a escadaria,
e
eram trezentos e sessenta a cinco degraus.
Voltou-se: uma porta se abrira e Neusa acabava de surgir,
amparada na enfermeira. Estava pálida e caminhava com dificuldade.
Precipitou-se para ela:
— Neusa, eu estava tão aflito, mas correu tudo bem, e eu soube
que era preciso, se você não fizesse isso...
Ela não dizia palavra. Amparou-se em seu braço, olhando duro
para a frente, saiu com ele do consultório, pisando com cuidado.
Na sala ao fundo médico e enfermeira conversavam:
— Já saíram? — perguntou ele.
— É uma boa menina.
— Acaba voltando. Essa gente não toma jeito. Ele é o pai?— É. Sujeito
esquisito, não parece muito bom da cabeça. Estava
tão aflito que eu disse que tinha de sair, deixei ele lá. Pensei até
que
fosse me agredir...
E o médico sorriu:
— Não sei o que me deu, que para tranqüilizá-lo inventei uma
história de descolamento do embrião, não sei se ele acreditou. Já
estava
até falando em Deus...
Calou-se, pensativo, depois consultou o relógio, despiu o avental:
— Olha, eu vou mesmo sair um pouco, dar uma volta para
espairecer. Não sei por quê, esse sujeito me estragou o dia...
RECOSTADA no canto, Neusa seguia em silêncio no táxi ao lado de
Eduardo.
— Você devia ter me esperado — queixou-se ele. — Eu tinha
resolvido...
Ela começou a chorar em silêncio.
— Não fique assim, Neusa. Já passou, esquece, agora. Era
preciso, o filho estava morto.
— Você diz isso só para me consolar — e ela voltou-se para ele,
nervosa, ansiada: — Foi horrível, Eduardo. Por que você deixou?
— Eu não deixei nada, eu... Eu não queria, fui lá para impedir.
Ela não o ouvia:
— Até o último instante esperei que você não deixasse, e fizesse
alguma coisa, ficasse comigo, me levasse embora com você...
— Não fique assim — ele repetiu, descontrolado, e seu coração se
oprimia: — Por favor, esquece, tudo já passou. Eu juro que tinha
resolvido...
Não havia mais o que dizer e ambos ficaram calados no táxi em
movimento. À porta da casa ele se despediu dela:
— Então adeus, Neusa. Qualquer dia desses...
— Não quero te ver nunca mais — ela disse, com firmeza, e se foi.
Depois de comer qualquer coisa num restaurante do centro, Eduardo foi
para a repartição e mergulhou no serviço. Procurava não
pensar em nada, esquecer o que lhe sucedera. Em vão Misael tentou
puxar conversa. Teve uma altercação com o contínuo por causa do
sumiço de um processo.
— Deixem-no — recomendou o chefe. — Está nervoso com a tal
história no jornal. Seria até melhor que esses dias ele não viesse aqui.
À tarde pensou em procurar alguém, um amigo, um conhecido.
Não vou procurar ninguém, decidiu. Não tenho amigos, sou um homem
sozinho, ninguém me reconheceria. Mas à noite, quando deu por si,
estava entrando no bar de sempre. O que vim fazer aqui? se
perguntava, depois de pedir um uísque. Jantara, fora a um cinema,
estava sem sono, não tinha onde ir. Depois sinto vontade de
conversar,
não aparece ninguém que eu conheça, vou ao telefone, ligo para
quem
quer que seja, e me apanham na engrenagem maldita, começa tudo
novamente... A sua solidão lhe pesava, espessa, impenetrável como
um
enigma prestes a ser decifrado — sentia-se devorado de uma
nostalgia,
pungente como uma recordação da infância — e era essa a outra
espécie de nostalgia, de que lhe falava o Toledo, finalmente a
reconhecia
— o homem que ele finalmente era — sozinho, nu e indefeso diante
de
si mesmo — e seus ombros se curvavam junto ao balcão, como sob o
peso de uma cruz. “Que eu devia mesmo é ir para casa, ler ou
escrever”,
pensava. “Não sou um escritor? Escrever, alguma coisa. O meu
romance”.
Desta vez, o homem não estava vestido de smoking, mas num
terno cinza, camisa azul de riscas, gravata de seda prateada e um
cravo
branco na lapela. O rosto era o mesmo do último encontro — pálido,
fino, escanhoado. Eduardo tomava um uísque a seu lado, arrependido
já de o haver reconhecido. Era inútil, sempre que bebia, alguma
coisa
de imprevisível lhe acabava acontecendo. Olhou-o, intrigado. Quem
diabo seria aquele homem.
— Sobre o que, o seu romance?
— Não sei ainda. Só vou saber depois de escrito.
— Conheço um sujeito que está escrevendo um romance.— Sobre o quê?
— Sobre você.
Eduardo se voltou, surpreendido:
— Sobre mim? Que história é essa?
— Um romance — repetiu o homem.
— E o que é que eu tenho a ver com isso? Ele me conhece?
— Você é o personagem dele — o homem insistiu, lacônico.
Eduardo calou-se e continuou a beber, pensativo, e continuou
sozinho. Logo, porém, o homem se voltava para ele:
— Imagine você apenas personagem de um romance que está
sendo escrito, só existindo na imaginação do romancista.
— Pirandello — limitou-se Eduardo.
— Um personagem — prosseguiu o homem, pensativo,
inclinando-se e pondo-lhe a mão no ombro: — Vivendo apenas o que o
romancista quer que você viva.
— É, mas neste caso não estaríamos conversando sobre isso.
Teríamos de obedecer ao nosso papel. Você seria personagem também.
— Não: eu seria a única pessoa do lado de fora com quem você
pode conversar. Uma espécie de janela aberta para a realidade. Sua
chance de se rebelar contra o seu criador, se libertar. Longe de
mim
você será apenas escravo.
— Escravo, como? — perguntou Eduardo, já meio confuso.
— Escravo do romancista. Quando o romance é seu, o verdadeiro
romancista é você.
Onde o escritor obstinado que dizia hei de vencer? Que se
trancava em casa para escrever e dizia hoje eu não saio de jeito
nenhum? Para quem todas as portas se abriam? A morte era uma
porta.
— Vítor morreu — pensou, quase em voz alta.
O homem a seu lado não disse palavra.
— Eu te conheço de alguma parte — disse Eduardo.
— Daqui mesmo, deste bar — não se lembra?
— Não: antes...— É possível.
De repente: o que estou fazendo neste lugar, bebendo com este
sujeito que mal conheço?
— Sabe de uma coisa? Vou tomar um último e vou-me embora.
Há muito tempo não bebia, estou ficando tonto.
Os olhos do homem o retiveram:
— Espere, ainda é cedo.
Eduardo olhou o relógio: como da outra vez, estava parado.
— Neste bar sempre acontecem coisas.
A porta se abriu para dar entrada a um casal.
— Olha aí, por exemplo: esses dois vêm sempre aqui, você deve
conhecer. Estão vivendo juntos.
Assustado como diante afinal do inimigo: encolheu-se para não
ser visto por Amorim e Gerlane que se acomodavam ao fundo.
— Tudo isso já aconteceu — disse, e chamou o garçom. Pagou a
sua conta, o homem não fez um gesto. Ergueu-se, firmando-se nas
pernas:
— Diga ao tal sujeito que o romance dele acabou.
Saiu, e respirou com volúpia o ar fresco da madrugada. Ergueu a
cabeça e foi andando. Sentia-se estranhamente eufórico, feliz:
agora
morra tudo! eu vou começar — repetia, mentalmente. E pôs-se a
conversar consigo mesmo, mãos nos bolsos, cadenciando os passos:
— Antes de mais nada: para onde você vai agora?
— Você não pode estar tão bêbado assim.
— O que pretende fazer?
— Você, personagem de romance.
— Então era o caso de telefonar para o romancista e perguntar: e
agora, o que é que eu faço?
— Pela última vez: você acredita em Deus?
Deteve-se no meio da rua, pernas abertas, olhos fixos no ar:
— Acredito — respondeu com firmeza, e prosseguiu a caminhada.
— Cuidado com o automóvel. Com quê você conta?
— Eu me conheço, mas é só.— Quem você está pensando que é? Scott Fitzgerald?
Ele tem um
romance que termina assim.
— Ele termina onde eu começo.
— É pouco.
oNorma)/�(y e � (.� bottom:0cm;margin-bottom:.0001pt;line-height:
normal'>breve está respirando difícil, os braços lhe pesam, o corpo se rebela e
o
medo o domina, ao sentir a corrente traiçoeira arrastá-lo. Agora
pode
compreender por que Rodrigo não se salvou. Nada com força para a
praia já distante, deixa em pânico que uma onda mais poderosa o
empolgue como um objeto largado e afinal se vê, ofegante e trôpego,
em
areia firme. Recebe ainda uma última lambada de espuma nas pernas,
despedida irônica do mar, e vem redimir-se da imprudência cá fora,
a
um sol esquivo, sob cuja luz raros banhistas mais precavidos se
aquecem.
— Telefonei para sua casa, Antonieta me disse que você tinha
vindo à praia. Que idéia é essa?
Térsio senta-se a seu lado, enquanto ele estende preguiçosamente
na areia o corpo esguio, branco, ascético.
— Não agüento nadar nem duzentos metros. Meu récorde foi
batido. Você leu meu artigo de domingo?
— Li.
— Que tal?
— Bom.
— Estou pensando em abrir com esse artigo um livro sobre o
romance — e, animado, começou a inventar: — “As Tentações da
Facilidade” seria um dos temas: imposições de fim de capítulo,
descrição dos personagens, etc.. „“A Reabilitação do Lugar-Comum”
seria outro; outro ainda sobre a técnica, propriamente: o corte, a
interseção de diálogos, contraponto, etc..
— Por que você em vez de ficar escrevendo sobre romance, não escreve
logo um romance?
Magoado, Eduardo retrucou:
— E você, por que em vez de se dizer poeta, não publica logo um
livro de poemas?
— Eu não me digo poeta: eu me digo jornalista.
Calaram-se ambos, voltados para o mar. Ondas furiosas
rebentavam, espumando. Agora já não havia mais ninguém na praia,
além deles dois. Deviam ser mais de cinco horas da tarde. Viram
aproximar-se um banhista baixo e gordo, abandonar a toalha na areia
e
aventurar-se ao mar. Eles mal ousavam molhar os pés.
— Aquele gordinho está meio afoito — comentou Térsio.
— Ainda há pouco eu quase me afoguei.
— O mar não está para brincadeira.
— Não está não.
Os dois ficaram calados e graves, olhando o banhista.
— Vamos embora? — sugeriu Eduardo, afinal.
— Vamos — respondeu Térsio.
Apanharam as camisas e saíram da praia sem olhar para trás. Na
areia ficou a toalha abandonada. Escurecia rapidamente, em breve
seria
noite.
Se ele se afogar, não tenho culpa — pensava Eduardo, aliviado.
Afinal de contas não sou palmatória do mundo, sou? Rodrigo era um
grande nadador e morreu afogado. Térsio nunca mais escreveu um
poema e se diz poeta. Acaso serei insensível como um poste, reto,
duro,
seco e inexpugnável? Também não sou feito de carne e osso, para
sofrer
ou gozar, acertar ou errar? Também não sou frágil? Também? Quer
dizer que eu tendo uma força, isto é, tendo sido por exemplo
campeão
de natação, tenho de salvar o afogado ou morrer com ele.
Acreditando
numa coisa mas fazendo outra, tenho de alterar o mundo para que
ele
passe a funcionar segundo a minha maneira de ser — por que não
alterar a minha maneira de ser? Resolveu conversar com Germano,
teve
a surpresa de saber que o velho se mudara.
— Sabe que o Germano se mudou? Alugou a casa e foi para um hotel na
cidade.
— É? — e Antonieta não deu maior importância à notícia.
— O que teria havido? — insistiu.
— Como é que eu posso saber?
— Assim sem me avisar, sem nada.
— Avisar como? Você não pára em casa.
— Podia ter avisado a você — e Eduardo prudentemente evitou a
discussão: — Você não fica em casa o dia todo?
— Com certeza se cansou daqui — Antonieta afinal resolveu
encontrar uma explicação: — Morar numa casa, sozinho daquela
maneira! No Pálace ele fica mais à vontade.
Eduardo concordou — mas logo a olhou com estranheza:
— Como é que você sabe que ele foi para o Pálace? Me disseram
só que se mudou para um hotel...
— Ora, Eduardo, não seja idiota.
— O quê? — disse ele, surpreendido com a reação da mulher. —
Idiota por quê?
— Ele vivia dizendo que gostaria de morar no Hotel Pálace.
— Nunca me disse nada.
— Disse a mim.
Eduardo ficou pensativo, mudou de tom:
— Por causa disso não precisa me chamar de idiota. Você anda
nervosa, irritada com qualquer coisa...
— Tenho motivos para andar irritada.
O que ele queria mesmo com o velho Germano? Ah, sim —
conversar sobre as suas idéias, qualquer coisa sobre o mundo e a
sua
maneira de ser. Mas o que, precisamente? Qual era o problema?
Gertrude Stein, agonizante, dissera: “Qual é a resposta?” E pouco
depois, ao morrer: “Qual é a questão?” Foram suas últimas
palavras.
Ser ou não ser, that is the question. O problema é o seguinte: Não
há
problema! Resolveu escrever um artigo sobre Gertrude Stein.
Seus artigos. Eternamente se preparando para tornar-se escritor,
eternamente começando, em pouco seria tarde, não mais teria direito de
escrever asneiras, teria de começar com uma obra-prima. Não depois
que lera “Guerra e Paz”. Jamais nenhum romancista seria capaz de
escrever algo de mais completo, e no entanto ninguém deveria
ambicionar menos. A literatura se dividia em duas partes: antes e
depois de “Guerra e Paz”. Isso era fácil de dizer, tudo na vida se
dividia
em antes e depois; antes e depois de casar, antes e depois de
amar,
antes e depois de escrever. A própria literatura: antes e depois
de
Proust, de Kafka, de Joyce... Para um escritor o importante não
era
antes nem depois, mas durante. Colocar-se naquela postura de quem
vai escrever — eis tudo, o resto era fácil. Quando iria ele. afinal,
levar
sua vocação a sério, começar?
Resolveu escrever um artigo sobre “Guerra e Paz”.
— Estou dirigindo uma editora — lhe dissera Vítor: — Faço
questão de lançar um livro seu.
Livro sobre o quê? Para quê? Só sabia escrever sobre a arte de
escrever — o que também era uma arte. Acabaria escrevendo sobre a
arte de escrever sobre a arte de escrever — e assim
indefinidamente,
enfiando-se na sua obstinação como um escravo entre dois espelhos,
até o último andar da torre onde o haviam aprisionado. Esta não o
levaria ao céu, pelo contrário, fixava-o ao chão, para sempre. Cada
vez
se tornava mais penoso escrever ou mesmo ler o que quer que fosse,
a
não ser aquilo que o ajudasse a entender-se, a configurar seus limites
e
aptidões... Encontrou em Valéry preocupação igual: “Esta doença
secreta nos priva das letras, apesar de estar nelas a sua fonte...”
Mas
não chegou a pensar em escrever um artigo sobre Valéry.
— Não é possível que eu só tenha defeitos — reagiu: — Devo ter
algumas qualidades também.
Esta talvez fosse a primeira — aceitar a existência de seus
defeitos. Portanto:
— Não exagerar as qualidades e sim corrigir os defeitos.
— O perigo do virtuosismo!
— A ubiqüidade é impraticável.
— Não cruzar a ponte antes de atingi-la.— Calma! O espetáculo começa
quando você chega.
Estava, assim, armado para viver? Não, estava se armando como
quem vai enfrentar a morte. Nascemos para morrer. Isso também não
queria dizer nada! Germano tinha razão. Senão, vejamos: nascemos
para morrer. Morremos para nascer. Dá na mesma. Muero porque no
muero. Nascemos para viver e morrer — vamos ser lógicos, meu
filho,
nosso nascimento é fruto de um momento de fraqueza de nossos pais.
Vivemos por displicência e morremos por exaustão, cansados de nos
agarrarmos a fórmulas de viver para não nos afogarmos. Rodrigo,
por
exemplo, se afogou apesar de tudo. Pela primeira vez pensou na
morte
como solução. Solução de que, se não havia problema? Um dia ia
abrir
a boca na sua roda costumeira no bar da cidade, para dizer uma
coisa,
viu que não tinha nada a dizer, não chegou a abrir a boca. Vasculhouse
interiormente, não encontrou nada; nem uma idéia, um pensamento
aproveitável. Estava vazio, literalmente vazio, nada interessava,
nada
tinha importância.
— Eu acabei completamente! — descobriu, abismado.
Suicidar-se, resolução afirmativa. Pronto, estava criado o
problema. Tinha dali por diante de sustentar uma resolução negativa,
a
de não se suicidar. Finalmente o círculo vicioso o aprisionava: sua
razão
de viver era esta — não morrer.
— Você precisa tomar cuidado — dizia Térsio, apreensivo. —
Neurastenia não é brincadeira. Se você começar a ficar triste sem
razão,
abra o olho, melhor procurar um médico. Principalmente se sentir
vontade de chorar sem motivo...
— E com motivo, pode?
Térsio ergueu os ombros.
— Bem, com motivo é diferente.
Então ele se pôs inesperadamente a chorar. Não confessava o
motivo nem a si mesmo: Gerlane? Não. Gerlane ficara para trás — já
não se encontrava com ela, já não tinha de mentir em casa, já
podia
dizer tranqüilamente, sem remorso, que ficara na rua com um amigo
até tarde. Os mais avisados diziam que se um homem fica na rua é porque
alguma coisa está errada em casa. O que estaria errado na sua?
O corpo de um afogado deu à praia. O do aviador continuava
desaparecido.
De errado não havia nada, propriamente — e isso é que o
intrigava: não tinha de que se queixar. Seria natural que Antonieta
é
que se queixasse, censurando-o pela irregularidade de sua vida — ou
ao
menos procurasse saber o que havia com ele. A princípio ela dava a
entender em meias respostas que se ressentia — ultimamente nem isso.
— Você ainda gostaria de ter um filho? — perguntou-lhe um dia,
de surpresa.
— Agora é tarde — respondeu ela e não lhe deu mais explicações.
Evitava-o quanto podia, o que não era difícil. Ele aos poucos deixara
de
procurá-la e dormiam em horas desencontradas. Quando telefonava da
rua para avisar que não iria jantar, ela nada dizia — mesmo quando
se
esqueceu de telefonar, ela não reclamou. Uma noite, depois de
avisar
que não iria, mudou de idéia: num inesperado movimento de ternura
pela mulher, que a ele próprio surpreendeu, decidiu voltar cedo,
levá-la
a um cinema. Não a encontrou. Esperou até onze horas da noite.
— Posso saber onde você estava? — perguntou-lhe apenas, num
tom deliberadamente neutro, quando ela finalmente chegou. Deixara-se
ficar na poltrona, um livro na mão, fingindo ler.
— Se lhe interessa.
— É claro que interessa.
— Você não disse que não vinha jantar?
— Disse.
— Que eu não esperasse?
— Disse. E daí?
— Resolvi não esperar mesmo. Fui jantar em casa de papai. Há
algum mal nisso?
— Não, nenhum — suspirou ele, largando o livro: — Só que você
podia ter voltado mais cedo.
— Depois do jantar fui ao cinema.
— Com quem?— Sozinha.
— Não fica bem você ir ao cinema sozinha, pelo menos à noite.
— Não tenho quem me leve.
— Você pode achar graça, mas hoje eu tinha justamente a
intenção de te levar. Que filme você viu?
— É um interrogatório?
— Não. Curiosidade. Não precisa reagir como se eu estivesse
desconfiando de você.
— Pois parece.
— Não está no meu temperamento.
— Então não se queixe.
— Não estou me queixando.
— E eu posso saber por que você veio cedo? Que milagre é esse?
— Estou com fome — disse ele, sem responder. — Não jantei até
agora. Vou sair para comer qualquer coisa.
Milagre? Sim, parecia viver à espera de um milagre. Havia alguma
coisa de errado, sim, de fundamentalmente errado, sim. Se
descobrisse
o que era, estaria salvo.
Ao chegar, sem sono ainda, ia para o escritório. Ficava tentando
ler ou escrever, mas não lia nem escrevia nada. Mesmo seus artigos
semanais, cada vez menores, lhe saíam penosos, difíceis: as
idéias,
sopradas de alguma parte de sua mente, não chegavam a impressionar
a consciência, não se traduziam em palavras e permaneciam difusas,
feitas em estados de espírito. Depois ia dormir, despindo-se no
escuro
para não acordar a mulher. Às vezes fazia chá e o tomava na sala
com
todos os requintes, como num secreto ritual da solidão.
Por que ela o evitava? Era evidente que o evitava. Mesmo quando
ele só para experimentar a procurava, ela se conformava em
aceitá-lo
apenas como quem rende o corpo a um sacrifício necessário e
inevitável. E no princípio fora tão diferente — quando se sentiam
integrados um no outro, completados, perfeitos.
— É tarde por quê? — perguntou ele.
— O quê?— O filho.
— Ora... — e ela se afastou sem dizer mais nada.
Que significava o casamento para ela? — pensava então, irritado.
A gente se casa é para isso mesmo: ter filhos e tocar o barco para
a
frente. Constituir uma família. Quem não pensar assim que não se
case.
E ele próprio? Afinal, que fizera de seu casamento senão um
campo aberto às acomodações, e a todas as transigências,
ludibriando,
burlando a vigilância de Deus?
— Mas escuta aqui, Eduardo Marciano, você acredita mesmo em
Deus? — ele se interrogava ao espelho, fazendo caretas. Ou quem
sabe
acreditava apenas em certos preceitos, certas regras de conduta
que
não chegava sequer a praticar, certos ensinamentos recolhidos e
conservados como as roupas de alguém que já morreu?
Basta de interrogações. Sim, acreditava em Deus, mas um Deus
longínquo, esquecido, distraído, voltado para outras preocupações,
que
não o seu mesquinho problema de aprender a viver. Ou de não ter
problemas. Não pensar mais nisso, pois. Às vezes, quando Antonieta
já
estava dormindo, não resistia e tornava a sair. Ia a um bar
qualquer,
beber um pouco mais em companhia de algum conhecido da
madrugada até que o sono viesse. Conhecidos é que não faltavam. Havia os
antigos freqüentadores do bar, perdidos como ele pela noite à
procura de esquecimento ou convívio — quando não os encontrava,
fazia relações com o primeiro que aparecesse. Uma noite, já
bêbado,
seguiu com um desses até uma casa de mulheres, deitou-se com uma
delas. No dia seguinte nem se lembraria o que chegou a fazer com
ela,
mas no momento em que entrou novamente na intimidade de seu
quarto que cheirava a tranqüilidade e sono, o sono de sua mulher,
teve
vergonha de si mesmo, teve remorso, deixou-se cair de joelhos junto
à
cama, começou a chorar. Antonieta acordou sobressaltada .
— O que foi? Você está doente?
Espantou-se ao vê-lo assim todo vestido:
— Você vai sair? Por que está chorando?— Por causa de meu pai — soluçou
ele, sem erguer a cabeça. Ela
chegou a sorrir, passou a mão pelos seus cabelos:
— Seu pai já morreu há tanto tempo...
— Mas só agora eu estou sentindo. Ele era tão bom para mim,
Antonieta.
Em verdade, passara sem transição a chorar a morte do pai.
— Você saiu e andou bebendo. Está cheirando a uísque. Vem
dormir que já é tarde.
— Não! Vou ler um pouco.
Foi dormir no escritório, porque naquela noite não queria se
aproximar de Antonieta.
ABRIU a carta com sofreguidão pensando ser de Hugo ou Mauro,
lembranças de um tempo morto. Era do Veiga: “Queria uma reportagem
sobre o momento político. Coisa viva, movimentada, inteligente, como
só
você saberia fazer”.
— Vou fazer uma reportagem política. Talvez seu pai possa me
ajudar.
Tentava amparar-se num entusiasmo de ocasião: coisa viva,
movimentada, inteligente, só ele saberia fazer — Veiga tinha
razão.
Ficou um pouco desconfiado: por que ele teria se lembrado
justamente
de mim? Já não publicava mais nada — o jornal cortara seus artigos
semanais por falta de espaço. E desde estudante não escrevia sobre
política. O Amorim, por exemplo, seria muito mais indicado:
entendia
do assunto, também era mineiro, também trabalhara com o Veiga...
Não
lhe agradava a idéia de visitar o ex-ministro especialmente para
isso.
Era-lhe penoso enfrentar a roda de políticos que o cercava —
bajuladores, aproveitadores eventuais, trocavam de idéia e de
convicções como quem troca de camisa, segundo as conveniências do
momento. Ele, pelo menos, ainda acreditava numas tantas coisas.
— São uns vendidos — concluiu, no mesmo tom de Mauro,
antigamente.Desta vez, porém, iria procurá-lo como jornalista — afinal
de
contas, era um escritor, um profissional, a quem uma missão fora
confiada. Como só ele saberia fazer. Sabia outrora fazer artigos
desafiando a censura, atacando o governo, exigindo democracia.
Onde
ficara tudo aquilo? Ali talvez estivesse a oportunidade para
recomeçar
algo de útil, voltar a escrever, influindo, participando.
Movimentada,
inteligente. Quanto mais gente lá estivesse, melhor. Conversaria
com
um e outro, contaria tudo que ouvisse.
Não durou muito o entusiasmo: teve a surpresa de encontrar o
velho sozinho, sentado na varanda, e desde o primeiro instante o calor
e
a simpatia com que foi recebido neutralizaram sua agressiva
disposição
de escrever fosse o que fosse.
— Reportagem? Mas como você anda fora do mundo! Já não
tenho mais nada com isso, meu filho, Deus me livre de política.
Desde
que deixei o ministério não me meti mais. Aceitei ser ministro
apenas
para servir à minha pátria. E servir ao presidente, meu amigo
pessoal.
— Conto com a minha experiência. Não sou inocente.
— Experiência... E o mundo ao seu redor? Olhe só quanta
injustiça, quanta miséria, tanta gente sofrendo.
— Demagogia.
— Seu católico de merda. Sorriu e apressou o passo.
— Você é muito inteligente, mas vai preso assim mesmo.
Dobrou a esquina, relanceou os olhos em torno, pôs-se a recitar:
— Creio em Deus Padre, todo-poderoso, criador do céu e da terra,
e em Jesus Cristo, um só seu filho...
Não sabia terminar. Inundado de alegria, começou a dançar no
meio da rua:
— Acabou, acabou, ACABOU.
Depois se deteve, dedo em riste:
— Dizer o indizível? O silêncio é a linguagem de Deus. A
linguagem do homem é difícil, retorcida, suja, atormentada. Tudo
que
se escreve é apenas uma paródia do que já está escrito e ninguém é
capaz de escrever. Tudo que se vê é apenas uma projeção do que não
se
vê, sua verdadeira natureza e substância. Basta olhar para as
minhas
mãos para sentir que elas ocupam o lugar das mãos de Deus...
No DIA seguinte contou a Misael, na repartição:
— Ontem tomei o porre mais estranho da minha vida.
O outro o olhou, penalizado:
— Você também levou muito a sério aquela história no jornal.
Daqui a uns dias ninguém vai falar mais nisso, você vai ver.
— A sério levou minha senhoria: me comunicou hoje que não vai
renovar o contrato. Aluguei o apartamento para morar com minha
mulher e não sozinho. Ontem ela me viu chegando bêbado. Mas acabou
confessando que leu a reportagem, disse que não quer complicações
com a polícia.
— Ela não consegue nada — o outro procurou tranqüilizá-lo: —
Uma ação de despejo é a coisa mais difícil de se ganhar na justiça,
hoje
em dia. Ainda mais um absurdo desses.
— Nada disso. No fim do mês eu me mudo.
— Vem jantar na minha casa hoje. Aniversário de meu filho, vai
haver um leitãozinho. Ele também é literato, você vai gostar.
Esteve a ponto de dar uma desculpa qualquer, mas decidiu ir. A
casa de Misael — num subúrbio distante, com um jardinzinho em
frente, a filharada em torno à mesa, a mulher com uma criança de
meses ao colo, a importância do chefe da família de súbito revelada:
— Luís, tira a mão daí! Maria, tenha modos. Hoje na repartição eu
tive um caso complicadíssimo... Joana, serve mais arroz aqui para
o
Eduardo.
Findo o jantar, confessou-lhe que um dia ainda seriam colegas,
tinha promessa firme de ser promovido assim que se desse a
primeira
vaga:
— Você compreende o que isso significa para mim: a vida com
essa gente toda dentro de casa não é brincadeira, tudo tão caro,
você
nem faz idéia. É verdade que cortaram a participação nas multas,
mas,
enfim, eu nunca pretendia mesmo multar ninguém!
Misael e seu pequeno mundo: cadeiras de palinha, toalha xadrez,
cortina na janela, horta, três galinhas, samambaias. Eduardo se
esquecera de como era uma planta, desde a infância não via uma
galinha.
Vendeu seus móveis, depositou o dinheiro na conta de Antonieta.
Encaixotou os livros, mudou-se para um hotel.
— O diabo são os caixotes — dizia, contrariado. — Quem sabe se
seu filho...
— Você está maluco?
O filho de Misael o olhava deslumbrado como ele, aos dezesseis
ou dezessete anos, olhara o Toledo pela primeira vez. Crivava-o de
perguntas, quando ia jantar com seu novo amigo:
— Acha que a poesia hermética é mais importante do que a
outra?
— Conhece Sílvio Garcia?
— Que pensa do concretismo?
Eduardo se voltava, surpreendido:
— Onde é que você aprendeu essas coisas, menino?
— Ele vive lendo — explicava o pai.
De súbito percebeu que devia ter agora a idade do Toledo,
naquela época! Pensou em dizer ao menino a mesma coisa que ouvira
então: eu sou um caso perdido, espero que você não cometa o erro
que
eu cometi. Mas qual fora mesmo o erro que o Toledo cometera? Qual
o
seu próprio erro? Não sabia: em alguma parte de sua vida ele se
deixara
ficar, esquecido, abandonado, largado para trás — e agora teria de
se
buscar como aquela agulha do sonho, perdida no fundo do mar.
— Você é muito precoce — limitou-se a dizer.
Mas este sabia o que queria dizer precoce. Trabalhava de dia
como empregado de escritório, pagava ele próprio seus estudos num
curso noturno.
— Não chega para comprar livros.
— Se lhe posso dar um conselho, é este: não tente apanhar o
fruto verde para que ele não apodreça na sua mão.
Mandou-lhe, afinal, todos os seus livros:
— Não sei se estou lhe fazendo um bem ou um mal...
— Por que você fez isso? — dizia Misael, desvanecido e nervoso,
torcendo as mãos: — Acho às vezes que você não regula bem,
Eduardo... Todos os seus livros! Quer matar o meu filho de tanto ler?
— Isso não tem a menor importância, pode ficar certo, não tem a
menor importância...
Segurou o amigo pelo braço:
— Você não entende disso, Misael, mas acredite: o menino é bom,
deixe ele ir para a frente, não se assuste nunca com ele! O filho
pródigo
teve vitelo, o outro não.— Por falar em vitelo: a patroa mandou avisar
que sábado vai ter
aquele pastel de que você gostou. E está contando com você para
padrinho do guri, já está grandinho, ainda não foi batizado.
Em alguma parte de sua vida ele se deixara ficar.
— Se eu conheço Sílvio Garcia?
Este, já não sabe por onde anda, nunca mais teve dele a menor
notícia. Vítor morto. Mauro médico. Hugo professor. E ele? e ele?
Gerlane com Amorim. Joubert com uma casa de decorações, ganhando
dinheiro. De Térsio leu afinal a prometida entrevista, de completa
adesão, anunciando a volta do homem ao poder. E finalmente, de
Antonieta, sabia por meias notícias de seu compromisso com um
diplomata na Europa, pretendiam casar-se em breve. De maneira que
todos se arranjavam, se acomodavam às exigências da vida, abriam
com
o corpo sua passagem, iam vivendo. O tempo já não tinha
importância:
não se contava senão em anos, para que se pudesse ver a curva dos
dias com mais perspectiva, já convertidos em experiência... Eis afinal
o
que Toledo lhe quisera dizer e não conseguira. Numa idade em que
os
outros mal começam a existir, sem perceber atingia vorazmente a
parte
mais definitiva de si mesmo.
— Sou quase feliz — reconheceu, espantado, na sua nova fórmula
de viver. Resolveu escrever uma carta para sua mãe, dando e
pedindo
notícias.
Em alguma parte de sua vida.
— Como é que ele vai se chamar?
Ficou inesperadamente comovido no batizado do filho de Misael.
— Você é o meu melhor amigo, Misael.
— Ora, deixe disso, compadre. Agora vamos até lá em casa que
vai haver uns docinhos.
Em alguma parte.
— Eu vou fazer uma viagem — comunicou de súbito. O outro se
espantou:
— Viagem? Para onde?
— Tentar a vida noutro lugar. Antes tenho que cumprir uma promessa.
— O que você está dizendo?
— Nada. Olhe, sua promoção vai sair, há uma vaga. Pedi
demissão hoje.
— Não! Você não fez isso! — e os olhos do amigo se encheram de
lágrimas.
Naquele mesmo dia arrumou suas coisas na mala, pagou a conta
e deixou o hotel. Sentia-se mesmo como na iminência de uma longa
viagem — tomou um táxi para o centro. Diante da ladeira de pedras
já
familiares se deteve, respirou fundo: eu podia subir de joelhos esta
aqui
mesmo, pensou, e sorriu. Avistou, à porta do convento, a figura do
monge que, já avisado, o esperava, acenando para ele. De súbito
uma
lembrança perdida lhe veio da infância e começou a rir, enquanto
se
aproximava do amigo.
— Mas que milagre foi esse... De que você está rindo?
— Tínhamos um encontro — explicou. — Mauro, você e eu. No
ginásio, se lembra? Você era o terceiro. Exatamente você.
O monge não se lembrava.
— Só eu fui... Mas não tem importância.
— Não acreditei que você viesse.
— Vim por um ou dois dias. Depois...
Calou-se. Não tinha importância também o que lhe aconteceria
depois.
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